O cozinheiro mais premiado do Brasil vem atuando na busca de soluções para o maior desafio do futuro: como alimentar a todos de forma saudável.

Dois reconhecimentos internacionais colocaram o nome de Alex Atala em evidência nas últimas semanas. Ele ficou em oitavo lugar no ranking The Best Chef Awards, que avalia cozinheiros do mundo todo a partir de critérios estabelecidos por uma neurocientista polonesa (Joanna Slusarczyk) e por um gastrônomo italiano (Cristian Gadau). Dias depois foi a vez de o DOM, criação de Atala que acaba de completar 22 anos, obter a terceira colocação na lista Latin America’s 50 Best Restaurants. Embora afirme não cozinhar em busca de prêmios, o chef mais premiado do Brasil sabe que conquistas assim são bem-vindas. Além de dar visibilidade ao seu trabalho de valorização da cozinha brasileira, o fato de estar entre os melhores do mundo em seu ofício o obriga a manter os pés no chão. “Eu brinco com a minha equipe que esses prêmios são como vinho: eles nos fascinam, mas se você beber muito, terá dor de cabeça”, disse Atala à DINHEIRO. Para ele, a Covid-19, que manteve o DOM fechado por sete meses, foi “o mais caro MBA” que ele se viu obrigado a cursar. Nesta entrevista, o chef e empresário antecipou o tema de seu próximo livro: mandioca, a raiz do Brasil.

ISTOÉ DINHEIRO — O DOM completou 22 anos e mantém a aura de mais premiado restaurante brasileiro. O que você busca quando vai para a cozinha?
ALEX ATALA — Causar emoções. Não se trata de simplesmente fazer comida ou alimentar as pessoas. É buscar a sublimação do prazer de comer. Eu digo que o maior voto de confiança que uma pessoa pode me dar é ir ao DOM e comer formiga. Ver a pessoa chegar ao restaurante e se despir de todos os preconceitos, de padrões mentais, para se abrir a uma experiência de gastronomia começando com uma formiga, é algo que me realiza como chef.

Qual a reação dos clientes a essa experiência?
Eu vejo que a sensação é muito parecida com uma montanha-russa. Dá um certo medo, frio na barriga, mas depois a pessoa gosta e quer provar de novo. Já faz quase dez anos que eu sirvo formiga e nos momentos em que eu fico sem fornecimento algumas pessoas saem frustradíssimas. Elas querem viver isso. Houve uma grande mudança no status desse ingrediente na alta cozinha. No México sempre se usou formiga e ovos de formiga. Hoje ela está em pratos de chefs no Japão, na Dinamarca…

E como você obtém essa matéria-prima?
Eu conheci as formigas em São Gabriel das Cachoeiras (cidade do Amazonas), em uma comunidade indígena. Eles colhem as formigas no mato, colocam na água, que provoca uma dormência, e levam para um freezer, onde elas morrem. Eu trago para cá e aqui faço um segundo processo de congelamento para deixá-las mais estéreis. Já vi essa formiga na cidade de São Paulo, na Floresta da Tijuca, no Brasil inteiro. E nunca tentei me suprir de outros fornecedores. Continuo respeitando e procurando fortalecer meu elo com a comunidade de São Gabriel das Cachoeiras para devolver a eles os méritos que colho como profissional de cozinha.

Valorizar pequenos produtores é uma característica do seu trabalho. Quais são as maiores dificuldades para que os pequenos possam manter suas atividades no campo?
O Brasil é um produtor de commodity. Uma das dificuldades em levar para a prateleira de um supermercado um produto artesanal, feito em pequena escala e com altíssima qualidade, é que o consumidor compara o preço com o de um produto importado de qualidade intermediária. Existe ainda no Brasil a crença de que o importado pode custar caro — e o nacional não — sem o exato julgamento da qualidade. Eu acho que o Brasil vem demonstrando, nos cafés, nos vinhos, nos queijos, um indubitável aumento de qualidade. É preciso estender isso para outros ingredientes. Alimentos de qualidade que sejam produzidos de forma correta, saudável.

“Meu sonho era ver ingredientes brasileiros em lojas gourmets. Hoje, a indústria entende que é possível ter o cogumelo Yanomâmi em produtos de prateleira” (Crédito: Moreno Saraiva)

A sua parceria com o café 3 Corações seria um exemplo de sucesso nesse sentido?
Eu trabalho com a 3 Corações há oito anos. O dia em que eu não for mais embaixador da marca vou continuar a falar dela com orgulho e carinho. E não só pelo café que leva a minha marca, ou pela linha florada, que valoriza as mulheres na cafeicultura. Eles têm o Projeto Tribos, com uma variedade que não é a arábica, que o mercado quer. É 100% robusta, com produção em uma área indígena lá em Rondônia. Os donos de uma empresa que se propõe fazer isso são tomadores de risco. Poderiam estar muito cômodos com a sua posição de mercado sem colocar uma causa social junto, que reverte 100% do lucro para a cadeia produtiva. Eles não são os únicos, mas estão mostrando um caminho para a indústria.

É papel de um chef ter uma função política e social?
A valorização da cozinha brasileira tem exercido esse papel de forma intensa. Nos últimos anos houve mudanças importantes na legislação do setor, como a aprovação da lei sobre o mel brasileiro e a de produtos artesanais de origem animal. O chef é hoje o elemento mais cintilante da cadeia do alimento. Em 2003, eu escrevi meu primeiro livro, Por uma Gastronomia Brasileira, no qual afirmei que o meu grande sonho era ver ingredientes brasileiros em lojas gourmets. Dá para dizer que isso já aconteceu. A gente fez um trabalho no Instituto ATÁ para poder colher cogumelos com os Yanomâmis e oferecê-los não só nos meus restaurantes como nos produtos de prateleira da Mãe Terra. Hoje a gente está vivendo um segundo momento, que é a indústria entendendo produtos como o cogumelo Yanomâmi.

Como a pandemia afetou seus restaurantes?
Está sendo muito difícil para todo o segmento. Muitos fecharam, outros ainda vão fechar. Quem recorreu a banco está tendo de pagar agora, quando os custos de insumos subiram demais. Eu vou encarar esse período de pandemia, principalmente o que já passou, como o MBA mais caro que eu tive de fazer. Estou convencido de que hoje eu conheço meus restaurantes de uma forma que eu não conhecia. Ainda temos um desafio pela frente. Não dá para baixar a guarda e dizer que já está ganho. Como dono de restaurante eu estou mais pobre, mas muito mais feliz. Quando você passa por momentos de grande pressão, duas coisas podem acontecer: ou aquilo que você construiu pode quebrar e seu sonho virar pó, ou aquilo se solidifica e cria um espírito agregador muito forte, muito resiliente. Foi isso que eu tive a felicidade de ver aqui na minha equipe. Todos me ajudaram demais.

“O delivery me fez entender que minha comida pode ser consumida fora do restaurante. Pude enxergar a potencialidade do meu negócio de outra forma” (Crédito:Istock)

Em algum momento você achou que iria quebrar?
Sim. Houve momentos assustadores, com o caixa indo à míngua, o DOM fechado por sete meses. Cheguei a achar que aquilo era o começo do fim. Quando nos autorizaram a reabrir, nem consegui entrar. Estava muito mal. Foi a equipe que arrumou tudo e deixou a casa em ordem. Não tinha dinheiro nem para dar uma mão de tinta, foi tudo na faxina.

Isso mudou sua visão como empresário?
Mudou muito. Dizem que você não pode faltar no emprego para o patrão não perceber que você não faz falta. Aconteceu comigo. A minha equipe me mostrou que é muito maior e que eu talvez nunca tivesse dado o valor que eles merecem. No lado financeiro, do dia a dia, a gente agora é muito mais eficiente. Havia uma zona de conforto no DOM e no Dalva e Dito que foi acabando. Todo mundo trabalha mais atento. Há mais eficiência em compras, armazenamento, produção.

O delivery também ajuda a gerar receita, não?
É importante lembrar que o delivery, que veio para ficar, não ajuda só na operação de entregar a comida pronta. Eu consigo comprar produtos por preços melhores e receber no dia para usar no cardápio e esgotar aquele estoque. Mas eu fui criado para pensar um restaurante dentro de quatro paredes. Que a minha comida deveria ser consumida nos lugares que eu domino. O delivery me fez entender que ela pode ir para fora do restaurante. Pude enxergar a potencialidade do meu negócio de outra forma.

Em um momento no qual o futuro da alimentação se impôs ainda mais na agenda global, de que forma iniciativas como os seminários Fru.to podem trazer soluções?
O Fru.to é uma plataforma on-line e gratuita com palestras traduzidas para português e espanhol por meio das quais buscamos trazer a comida para o centro da discussão, mas não na forma de guerrilha. O Fru.to acredita numa nova atitude e principalmente no esforço conjunto para trazer soluções de impacto na cadeia do alimento. Esse talvez seja o maior paradoxo da humanidade nas próximas décadas: como alimentar todos de forma saudável. A pandemia da Covid não é nada comparada à pandemia da má alimentação no mundo. Essa sim é uma grande efermidade. E para resolver isso é preciso entender desde aspectos evolutivos, culturais, de meio ambiente, legislação. O Fru.to tenta ser um ponto de encontro dessas muitas cores que o prisma da comida tem.

Seu próximo livro é sobre mandioca. O que ela tem de especial para merecer a sua atenção?
O Brasil nunca olhou sua história antes de Cabral. A mandioca já estava aqui e os instrumentos para processá-la já estavam aqui antes dos portugueses. Ainda hoje há receitas e usos da mandioca e seus derivados que foram preservados na forma original. A mandioca é um ingrediente de todo o Brasil e todas as classes sociais. É onipresente na mesa brasileira. Das folhas ao talo, tudo vira produto. É a raiz do Brasil, dos indígenas ao Claude Troisgros, que quando chega da França faz um purê de mandioca. O dadinho de tapioca do Rodrigo Oliveira, do Mocotó, ganhou o mundo. Hoje, argentinos e peruanos falam de mandioca. O livro não é um trabalho meu. Tem antropólogo, historiador, pesquisadores que permitem fazer essa afirmação de que é a raiz do Brasil.

É mais difícil acertar uma receita nova ou fazer um restaurante dar lucro?
Eu ainda não descobri. Uma receita nova é sempre o que tira da gente o melhor de nós. Eu não durmo pensando em dinheiro, nem na pandemia. Pensar em uma nova receita é o que me move. Ir ao mercado e olhar os ingredientes é um jogo de sedução.