Já faz algum tempo que os conceitos de coaching e mentoria vêm ganhando grande destaque e difusão no mundo corporativo. Segundo alguns especialistas, o coaching seria uma metodologia específica que, por meio de perguntas poderosas, procura tratar as coisas “como elas são”, trabalhando no nível das competências e habilidades do indivíduo com o fim de fazê-lo atingir certos objetivos específicos. Já a mentoria se diferenciaria por trabalhar e desenvolver a autonomia e a maturidade individual, visando o aperfeiçoamento da capacidade de fazer escolhas e tomar decisões.

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Atualmente, proliferam as ofertas deste tipo de assessoria, assim como os cursos que propõem habilitar coachings e mentores para o mercado, com variados níveis de competência e seriedade, como sabemos. Nesse sentido, não deixa de ser notável a correspondente disseminação de estudos e publicações – também de variada qualidade – que vem acontecendo, procurando estabelecer definições e procedimentos a partir de fundamentos práticos e teóricos, oriundos da Sociologia, Psicologia, Filosofia. Diante disso, gostaria de trazer uma singela contribuição, oriunda da literatura clássica (meu campo de interesse e estudo) que talvez possa ajudar numa compreensão mais ampla e profunda desse território tão importante quanto delicado que é o da formação e gestão de pessoas.

Antes de designar uma função ou profissão, a palavra Mentor foi um nome próprio. Ela aparece pela primeira vez na história da nossa civilização em um livro – uma das narrativas mais antigas e importantes da humanidade, já citada em outros artigos deste blog: a “Odisseia”, de Homero, escrita no século VIII a.C. Neste poema em 24 cantos que conta o retorno de Odisseu (Ulisses, na tradução latina) a Ítaca, depois do final da guerra de Troia, uma das personagens centrais da trama, a deusa Atena, preocupada em restabelecer a justiça no mundo dos homens e garantir que estes realizassem o seu próprio destino (a sua própria beleza, como denota o vocábulo grego original, kalokagathia), além de mobilizar céus e terra para que o sofredor Ulisses, preso por uma ninfa numa ilha isolada, pudesse retomar e concluir sua volta para casa, interfere pessoalmente no despertar da consciência e na iniciação de Telémaco, filho de Ulisses que aguarda o retorno do pai. A ausência deste por quase 20 anos acabou por gerar uma situação complicada e embaraçosa para o jovem herdeiro, que vê sua casa invadida por arrogantes pretendentes que requestam a mão de sua mãe, Penélope, supostamente viúva, enquanto dilapidam seu patrimônio e sua honra, com festas e banquetes sem fim. Sentindo-se impotente e inseguro, Telémaco assiste à toda aquela injustiça de forma passiva e conformista. Explicitando a relação intrínseca entre o retorno do pai e o despertar do filho, Atena se põe em ação, assumindo a aparência de um velho e sábio conselheiro, de nome Mentor, que desembarca em Ítaca a fim de incitar e iniciar o jovem Telémaco em sua kalokagathia. Sem desconfiar da sua origem divina, Telémaco escuta e acolhe as sábias palavras de Mentor, refletindo-as em seu coração, o que acaba por desencadear um belíssimo processo de autoconhecimento e autorrealização.

Franqueando-nos o acesso às origens e fundamentos daquilo que atualmente chamamos de mentoria, a “Odisseia” de Homero nos traz lições preciosas sobre o real sentido e papel do mentor no processo de iniciação e desenvolvimento da pessoa humana. De maneira especial, aprendemos com este grande clássico que a função original do mentor é a de inspirar, de despertar e suscitar a reflexão daquele que está sendo orientado; de tirá-lo da zona de conforto e fazê-lo descobrir por si mesmo o potencial que traz dentro do seu próprio coração. A “Odisseia” nos ensina que o mentor, longe de ser um guru, é um verdadeiro pedagogo.

Eis aí mais um exemplo de pertinência e necessidade da leitura dos clássicos para enfrentar os desafios destes nossos tempos tão desconstruídos e desnorteados.