A manobra é manjada: quando a popularidade está em baixa, escolhe-se um inimigo externo e se cria um ambiente de tensão e guerra. Relembre. Argentina e Inglaterra se aproveitaram da mesma batalha pelas Malvinas, que serviu tanto para desviar a atenção do desastre econômico portenho quanto para alavancar a popularidade da primeira-ministra britânica Margareth Thatcher – que se reelegeu. O americano Lyndon Baines Johnson, contra a ascensão comunista, reconquistou apoio do eleitor quando deu impulso à Guerra do Vietnã, em 1964. George W. Bush no Iraque, Vladmir Putin na Criméia… Com as mesmas características, a história costuma se repetir.

Embora um conflito militar seja improvável, a velha cartilha foi adotada pelo presidente americano Donald Trump na relação com a China, às vésperas das eleições nos Estados Unidos, em que perde terreno para o democrata Joe Biden. O mais recente capítulo contrasta com a própria democracia. Sem provas, Trump anunciou que irá proibir a rede social chinesa TikTok no país, afirmando que a plataforma pode estar a serviço de espionagem por parte do setor de inteligência chinês. “A política externa americana deverá ser abruptamente alterada se Biden vencer, voltando a um paradigma conciliatório”, disse o especialista em direito internacional Acácio Miranda, do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP/DF).

A ofensiva contra o TikTok ocorreu duas semanas depois de Trump mandar fechar o consulado chinês em Houston, no Texas. O governo de Pequim classificou a ofensiva como um “movimento hostil sem precedentes”. Em retaliação, a representação da Casa Branca em Chengdu também foi fechada, sob ordem do ministro das Relações Exteriores da China, Wang Wenbin. Os dois lados afirmam ser vítimas de espionagem e de conspiração no campo da tecnologia. “A decisão do governo americano representa um basta à ação dos chineses de tentar roubar dos Estados Unidos os segredos sobre o desenvolvimento de uma vacina contra a Covid-19”, disse, em entrevista coletiva, o secretário de Estado americano, Mike Pompeu.

WAR O problema é que o acirramento das tensões entre Estados Unidos e China, com cara de Guerra Fria – o conflito que quase colocou EUA e União Soviética em um confronto nuclear após a Segunda Guerra Mundial –, volta a deixar em lados opostos do tabuleiro de War as duas nações mais ricas do mundo, com consequências para toda a economia global. “O prolongamento das tensões entre os dois países deve neutralizar toda a injeção de estímulo à economia, de US$ 1 trilhão, que o governo americano está fazendo nesta semana”, afirmou o economista Dan Clifton, chefe de análise política na consultoria americana Strategas. Para ele, o embate extrapola disputas geopolíticas. “Está virando uma guerra fria entre os dois”.

Essa guerra fria tende a se acirrar até a eleição americana, em novembro, e influenciar os rumos de toda a economia mundial, segundo o analista político Carlo Barbieri, presidente do Grupo Oxford, consultoria brasileira sediada nos Estados Unidos. “A nova política de Trump é acabar com os acordos globais e partir para acordos bilaterais”, disse o analista, que considera que a principal mudança na política externa dos EUA com uma eventual eleição de Biden seria o fim da tendência de construção de acordos de livre comércio.

Os ânimos ficaram mais acirrados diante do arrefecimento da economia global neste ano. A economia da China vai crescer 1,6% em 2020, a taxa mais baixa desde 1976, devido ao impacto da pandemia da Covid-19, mas deve expandir 7,9% em 2021, segundo as projeções do Banco Mundial.

EFEITOS NO BRASIL Existe, no entanto, uma visão mais pró-Brasil nesse conflito diplomático. O professor de economia da Universidade de São Paulo (USP) Celso Grisi acredita que o País poderá tirar grande vantagem da tensão. “As compras chinesas buscam alternativas aos EUA, à medida em que essas tensões se agravam, e a alternativa é o Brasil, com sua produção agropecuária”, afirmou. As exportações brasileiras para a China cresceram quase US$ 4,7 bilhões no primeiro semestre deste ano, na comparação com a primeira metade de 2019. Na visão de Grisi, no entanto, o País precisa ficar “equidistante” dessas duas potências para conseguir manter uma relação de diplomacia econômica pragmática, com benefícios para os setores de milho e soja, além de proteína animal. Em resumo, na Guerra Fria EUA-China, o melhor à diplomacia brasileira seria manter o sangue frio.

Kamala Harris, a vice de Biden

Escolher a senadora em primeiro mandato Kamala Harris, 55 anos, como companheira de chapa na corrida presidencial americana pode ser lido como um golpe de mestre do democrata Joe Biden. Considerada uma estrela em ascensão, a filha de dois acadêmicos (mãe da Índia e pai da Jamaica) foi a primeira pessoa negra e a primeira mulher a se tornar promotora distrital de São Francisco e, depois, procuradora-geral da Califórnia. “Decidi me tornar promotora porque acreditava que havia pessoas vulneráveis e sem voz que mereciam ter voz naquele sistema”, afirmou, em artigo publicado pelo The New York Times. Em 2016, foi eleita a primeira senadora negra da Califórnia. Agora, é a primeira mulher negra e a primeira pessoa de ascendência indiana a ser nomeada para um cargo de ambição nacional por um partido importante – além de ser apenas a quarta mulher na história americana a ser escolhida para uma chapa presidencial. Entre suas prioridades políticas está a justiça racial, tema que ganhou força após o assassinato de George Floyd por um policial branco, em maio. Ainda que leve bandeiras afirmativas no dia a dia, Kamala Harris não está na extrema esquerda – para padrões americanos – do Partido Democrata. A escolha de Biden mostra um claro aceno ao eleitorado negro e feminino. Mas, acima de tudo, arrasta o ringue das eleições do terreno geográfico – o debate sobre em quais estados democratas e republicanos terão mais chances – para o campo dos temas relacionados a gênero, questões raciais e minorias.