Em meados de março, a Nestlé enfrentou protestos inéditos no Brasil. No Centro de Convenções Ulysses Guimarães, onde aconteceria o Fórum Mundial da Água, paredes foram pichadas com a frase “fora Nestlé”. Em São Lourenço, em Minas Gerais, uma unidade de engarrafamento de água da empresa foi invadida por manifestantes. Os ânimos exaltados eram por conta de uma notícia falsa de que a companhia suíça iria comprar o Aquífero Guarani, maior reserva subterrânea de água do mundo localizada no Brasil, na Argentina, no Paraguai e no Uruguai.

Combater as fakes news, porém, não é o único desafio atual da Nestlé. A maior fabricante de alimentos do planeta, com um faturamento de US$ 90 bilhões, presença em 150 países e que vende diariamente 1,2 bilhão de produtos, está passando por uma das mais desafiadoras fases de sua história, promovida por profundas mudanças na indústria alimentícia, em razão de novos hábitos e demandas dos consumidores. Está em curso uma verdadeira cruzada contra a má alimentação, o que impacta diretamente os alimentos industrializados. Só nos EUA, o setor de orgânicos já movimenta US$ 50 bilhões anualmente.

Cerca de 15% das frutas e vegetais vendidas no país se enquadram nessa categoria, segundo a Organic Trade Association, que representa o setor. Há uma crescente percepção de que a maneira como se produz comida não está sendo capaz de alimentar corretamente a população. Os números confirmam essa impressão. Por um lado, existem cerca de 1 bilhão de pessoas mal nutridas no mundo. Por outro, o consumo de grandes quantidades de açúcar e sódio fez a obesidade e o diabetes dispararem. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, o número de pessoas afetadas por essas doenças aumentou em 60% na última década. “Nos nossos 151 anos, o mundo viu enorme mudanças”, afirmou à DINHEIRO Paul Bulcke, chairman da companhia. “Tivemos de nos antecipar, adaptar e mudar para continuarmos relevantes.”

É exatamente o que parece estar acontecendo agora. E o Brasil será peça-chave nessa estratégia da Nestlé. “Está claro que há uma tendência global em direção a um consumo mais natural e de produtos produzidos localmente”, afirmou Laurent Freixe, CEO da companhia para as Américas, em entrevista exclusiva à DINHEIRO (leia entrevista ao final da reportagem). Globalmente, a estratégia é de ampliar a oferta de produtos naturais, inclusive orgânicos, e reduzir a quantidade de ingredientes que podem ser nocivos à saúde, se consumidos em excesso, como o açúcar. Debaixo desse guarda-chuva, a ideia é atuar de forma regional. “Temos muitas marcas locais e atuamos localmente”, diz Freixe, citando como exemplos, no Brasil, o achocolatado Nescau e os leites Ninho e Molico. “Esse é um dos motivos pelos quais vejo que essa evolução dos consumidores é positiva para nós.”

A nova estratégia da Nestlé inclui a compra da americana Sweet Earth, que produz comida vegana
(à esq.), e dobrar a produção de café em Minas Gerais

Algumas ações recentes da companhia indicam que, de fato, ela está focada em oferecer produtos menos prejudiciais à saúde. No Brasil, a Nestlé criou uma startup interna cuja missão é desenvolver lanches orgânicos – ainda não há prazo para a entrada no mercado. Ela também passou a vender por aqui aveia orgânica, em farinha e farelo. Trata-se da primeira linha da empresa no segmento, no País. Até 2019, a meta é comercializar, também, leite orgânico. O mercado brasileiro, o quarto maior para a companhia no mundo, se tornou fundamental nessa nova estratégia, por dois motivos. Primeiramente, pela diversidade do consumidor.

Segundo Freixe, o País pode liderar muitas dessas mudanças. “Há uma diversidade grande em termos de consumo, variando desde o mais moderno ao mais tradicional”, diz o executivo. Ao mesmo tempo, o Brasil é um dos maiores produtores de commodities agrícolas do mundo. “Obviamente, o País tem um papel importante a desempenhar neste momento em que os consumidores demandam uma alimentação mais orgânica”, afirma Freixe. Das 50 fábricas da companhia nas Américas, 22 estão no Brasil. Em fevereiro, a empresa anunciou um aporte de R$ 200 milhões para dobrar a capacidade de sua fábrica de cápsulas de café Dolce Gusto em Montes Claros (MG). O executivo ressalta que um ponto importante da estratégia é concentrar a fabricação dos produtos em regiões próximas aos produtores rurais. É uma condição que o País oferece quase naturalmente.

A Nestlé também saiu às compras. No ano passado, ela pagou US$ 2,3 bilhões pela canadense Atribum Innovations, especializada em vitaminas. Em fevereiro, adquiriu, por um valor não revelado, a equatoriana Terrafertil, que comercializa produtos naturais e orgânicos. Na outra ponta, a companhia se desfez de negócios com baixo potencial de crescimento. Foi o caso da divisão de águas brasileira, vendida para o Grupo Edson Queiroz, dono das marcas Indaiá e Minalba, no mês passado. Os valores envolvidos não foram divulgados. A Nestlé ocupava a sexta posição nesse setor, com 1,9% de participação. Segundo Angélica Salado, analista sênior da Euromonitor, o Grupo Edson Queiroz, líder no setor com 10,9% de participação, mantém uma “sólida posição de mercado há muitos anos”. Com isso, era difícil para a empresa suíça ganhar mercado.

Essa incapacidade de ganhar mercado também justifica, de acordo com Freixe, outra movimentação da companhia, ainda mais significativa: a venda de sua unidade de doces e chocolates nos Estados Unidos para a Ferrero, por US$ 2,9 bilhões. “Estávamos num distante quarto lugar”, diz Freixe. “Economicamente, nossa posição não era sustentável.” O executivo garante, por outro lado, que o segmento de confeitaria ainda é importante para a companhia, especialmente no Brasil, onde ela controla a marca Garoto, aquisição que foi feita há 15 anos, mas ainda enfrenta problemas no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) – para concluir a compra, a empresa terá de vender algumas marcas, como Chokito e Lolo, que podem ir parar nas mãos de um investidor financeiro.

A jogada mais ousada da Nestlé nessa transformação, no entanto, talvez seja a compra da americana Sweet Earth. A empresa, com sede na Califórnia, especializou-se em comida vegana, em especial produtos substitutos para a carne. Ela vende desde burritos até hambúrgueres feitos de proteínas a base de plantas. Esse é um mercado que, pelos cálculos dos suíços, movimentará US$ 5 bilhões até 2020, apenas nos Estados Unidos. Os produtos da Sweet Earth já são vendidos em mais de 10 mil supermercados nos EUA, incluindo o Walmart e o Whole Foods, cadeia de comida natural recentemente comprada pela Amazon.

Essas movimentações da Nestlé não são por acaso. Um estudo da consultoria britânica Mintel, especializada em consumo, aponta que, entre as principais tendências da indústria para 2018, estão a transparência e o autocuidado, em referência à maior preocupação com a saúde (veja quadro). “À medida que mais consumidores sentem a vida moderna mais caótica e estressante, dietas flexíveis e balanceadas se tornam elementos integrais das rotinas”, afirma Jenny Zegler, analista da consultoria. Essa preocupação se reflete nos números de mercado. Dados da empresa de pesquisas Euromonitor apontam que, no Brasil, a venda de doces e guloseimas caiu de 662 mil toneladas, em 2012, para 559 mil, no ano passado. Por conta disso, a americana Mondelez, dona das marcas Oreo e Lacta, fechou duas de suas quatro fábricas no País. Nos Estados Unidos, pesquisas encomendadas pelo The Vegetarian Resource Group, que advoga em favor do vegetarianismo, apontam que o porcentual de vegetarianos no país passou de 3% da população, em 2009, para 5%, em 2016.

Investir em tecnologia, em especial no setor de biotecnologia, é outra forte tendência da indústria alimentícia. Segundo Adriana Brondani, diretora-executiva do Conselho de Informações sobre Biotecnologia (CIB), as pesquisas mais modernas caminham no sentido de criar alimentos melhorados, que trazem mais nutrientes. Como exemplo, ela cita o caso do “arroz dourado”, recentemente liberado para comercialização na Austrália e no Canadá. Por meio da manipulação genética, esses grãos possuem maior concentração de betacaroteno, que se transforma em vitamina A. Trata-se de um transgênico e seu uso é polêmico. “Mas é uma questão de informar o consumidor”, afirma Brondani. “Praticamente todo alimento que consumimos hoje passou por melhorias genéticas.” Outra possibilidade é fazer essas manipulações, mas sem incluir genes de outros organismos nos processo. Dessa forma, o alimento melhorado não se enquadra na categoria transgênico. Um exemplo disso é um tipo de maçã à venda nos EUA que demora mais para escurecer.

O desafio da Nestlé é fazer essas mudanças em seu cardápio ao mesmo tempo em que enfrenta pressão de investidores por resultados. No ano passado, as vendas da companhia suíça cresceram 0,4%, a menor expansão dos últimos 20 anos. O lucro líquido encolheu 15,8%, para US$ 7,4 bilhões. Com isso, a preocupação com os resultados de curto prazo aumentou na empresa, que passou a rever alguns investimentos, especialmente em mercados com baixo potencial de crescimento, como os de doces e chocolates, ou nos quais a companhia não ocupa uma posição majoritária. Soma-se a esses fatores, a entrada do investidor-ativista americano Dan Loeb, que comprou US$ 3,5 bilhões em ações da companhia, no ano passado. Desde então, ele vem pressionando por lucros mais expressivos e agilidade nas mudanças. “Estamos sempre mudando”, diz Bulcke, o chairman da Nestlé. “Não somos um monstro.”


“O Brasil é crucial para o futuro da indústria”

Em entrevista exclusiva à DINHEIRO, Laurent Freixe, CEO da Nestlé para as Américas, fala sobre os novos hábitos de alimentação e como essa transformação está impactando o modo de fazer negócio

A Nestlé está enfrentando desafios relacionados a novos hábitos de alimentação, especialmente entre os jovens. Como a empresa está trabalhando com essa nova realidade?
Há muitos desafios, mas eles trazem mudanças e oportunidades. Está claro que há uma tendência global em direção a um consumo mais natural e de produtos produzidos localmente. As novas gerações são mais preocupadas com as questões ambientais. Por isso, vemos marcas locais crescendo. Isso aumenta a competição sobre nossas marcas. Ao mesmo tempo, possuímos um bom portfólio de marcas locais. Também estamos entrando no setor de proteínas à base de plantas.

É por isso que a Nestlé tem saído de alguns segmentos, como o mercado americano de chocolate?
Nós vendemos nossa operação de chocolates nos Estados Unidos por outros motivos. Economicamente, nossa posição não era sustentável. Estávamos num distante quarto lugar, com uma participação de mercado pequena. Mas acreditamos que o setor de confeitaria pode fazer parte de uma dieta saudável. Gosto e prazer devem fazer parte de uma boa nutrição. Alimentar-se não pode ser apenas um sacrifício.

A Nestlé pretende ampliar a atuação regional no Brasil, com mais marcas locais, por exemplo?
Somos uma empresa descentralizada. Isso está no nosso DNA. O que não significa falta de diretrizes globais. Há uma estratégia e ambições globais. Mas, nosso foco está nos consumidores. Por isso, buscamos oferecer aos nossos times locais as estruturas necessárias para tomar as decisões. Esse é um dos motivos pelos quais vejo que essa evolução dos consumidores é positiva para nós. Temos muitas marcas locais e atuamos localmente.

Com a evolução tecnológica da agricultura, as fazendas urbanas devem permitir que os consumidores tenham mais acesso a produtos frescos, direto dos produtores. Como isso impacta o negócio da Nestlé?
As pessoas deviam comer mais produtos frescos. Isso é bom. Dentro desse contexto, temos um papel importante a desempenhar.

De que forma? Ampliando a oferta de produtos orgânicos?
Sim, claro. Cada vez mais os consumidores demandam produtos naturais e orgânicos. São tendências que estamos levando em consideração em nossa estratégia.

Nesse contexto, qual é o papel do Brasil na estratégia da Nestlé, considerando que o País é uma dos maiores produtores de alimentos do mundo?
O Brasil é um grande mercado e pode liderar muitas dessas mudanças. Há uma diversidade muito grande em termos de consumo, variando desde o mais moderno ao mais tradicional. O País é, também, um grande produtor de commodities agrícolas. Então, obviamente, tem um papel importante a desempenhar neste momento em que os consumidores demandam uma alimentação mais orgânica. O Brasil é crucial para o futuro da indústria.

O sr. vê a necessidade de se modernizar a agricultura no País?
Sim, como em outros lugares. Nós precisamos gerenciar melhor os recursos naturais, a qualidade e a quantidade da produção.