Nos últimos tempos muita polêmica foi criada em torno do lançamento da Libra, que nada tem a ver com a moeda britânica, mas poderá ser a joia da coroa do Facebook. Uma moeda utilizada nas mais diversas transações que não teria fronteiras ou entraves com conversão de câmbio, uma verdadeira revolução financeira, que, por isso mesmo, rapidamente ficou sob a mira de políticas financeiras territoriais. 

A Libra funcionaria como uma carteira global, estável, sem a flutuação constante das moedas físicas. Será possível pagar o Spotify, comprar no Mercado Livre, chamar um Uber e, quem sabe um dia, pagar tudo que você quiser com a Libra.

Mas será mesmo? 

Prestes a lançar um inovador modelo monetário digital com a emissão da sua própria criptomoeda, Zuckerberg já vê sua criação ameaçada antes mesmo de entrar em circulação. Será que a Libra irá resistir à regulamentação em tantos países com legislações e economias tão diferentes? Como garantir a segurança de transações internacionais? Como não colocar o sistema em risco de colapso?

São muitas as dúvidas e parece cada vez mais improvável que consiga vencer todos os desafios inerentes às inovações desta envergadura. O Facebook tem respostas para muitas perguntas e um plano de negócios muito bem desenhado, mas se a Libra vai mesmo sair do papel e virar moeda ainda teremos que pagar pra ver.

Para conceber a moeda, o Facebook estruturou um consórcio que reúne 29 empresas e ONGs. Com um aporte de US$ 10 milhões de cada uma, empresas como a Vodafone, Uber e o Mercado Livre entraram nessa empreitada. A união destas gigantes prevê a formação de um sistema monetário global que colocaria em circulação uma moeda para ser utilizada no ambiente digital pelo número impressionante de 2,7 bilhões de usuários ativos da rede social e suas plataformas. Assim, junto com o tsunami de fintechs que estão revolucionando o mercado financeiro, a Libra se apresenta, se viabilizada, como mais uma disrupção aos bancos tradicionais. 

Facebook

Há também potenciais usuários da moeda em plataformas de outras empresas de tecnologia, o que levou à organização de um grupo para administrar a criptomoeda para alcançar, além dos usuários do Facebook, um número ainda mais significativo de pessoas, ajudando a reforçar o poder financeiro do consórcio na medida em que mais consumidores venham a adotar a moeda como forma de pagamento.

Uma nova subsidiária do grupo, a Calibra, será responsável pela “credibilidade” da moeda. O grupo irá funcionar independentemente do Facebook com o propósito de “regular” a moeda. 

E por que isso?

É simples. Você confiaria sua vida financeira a uma empresa como o Facebook? A mesma que já deixou vazar dados de usuários? É aí que a Calibra entra para “descontaminar” o consórcio dessa má reputação.

Há cerca de 3 anos, escrevi um artigo sobre os primórdios das transações bancárias digitais e do nascimento das moedas virtuais. Como toda nova tecnologia, não demorou para inovação avançar sobre os modelos monetários que vigoraram durante séculos, com moedas emitidas exclusivamente pelo Banco Central e com valor vinculado aos altos e baixos de moedas estrangeiras mais fortes.

A Libra tem como um dos argumentos a seu favor o de que a exclusão financeira é estimado em 2,5 bilhões de pessoas (praticamente um Facebook inteiro). E ela traria para dentro de um novo sistema econômico essas bilhões de pessoas no mundo que não são clientes dos bancos tradicionais. Seria um benefício sem precedentes para populações que sofrem com a falta de alternativas de serviços financeiros e pagam taxas enormes para transacionar dinheiro. 

Mas a ideia de reunir os continentes, numa espécie de reviver a Pangeia, excluindo barreiras comerciais e de câmbio e os limites fronteiriços, me parece um pouco estranha, diria utópica. O especialista em finanças Chris Skinner levanta essa controvérsia: Como uma criptomoeda chegaria aos não bancarizados e aos que não consomem em países onde falta água e esgoto? Essas pessoas possuem acesso à internet ou a um smartphone? De que forma, sem ter uma conta bancária, irei fazer a transação de compra da Libra?

A moeda do Facebook foi projetada para não funcionar como o Bitcoin, tampouco ser concorrente, mas poderá ter um impacto ainda maior. Não deve ser um ativo especulativo, mas sim uma forma de dinheiro digital apoiada por uma reserva de ativos. Essa reserva é justamente o depósito que os usuários farão com sua moeda nacional para converter em Libra. 

Vídeo explicativo sobre a Libra. Fonte: Techcrunch

Outro especialista no assunto, Kevin Curran, salienta que todos os membros fundadores da associação passam a ser uma espécie de Visa ou Mastercard para o século XXI. Justamente elas, representantes legítimas do velho mercado financeiro, também são membros da “Libra Association”. 

Será uma mera coincidência ou não estão querendo perder o baile?

Por que a Libra pode dar certo?

Para um dos maiores especialistas em criptomoedas, Courtnay Guimarães, é extremamente interessante a não delimitação territorial que a moeda propõe. Ele questiona a preocupação dos bancos centrais e alerta para o crescimento financeiro que essas empresas unidas poderão ter. Não é para menos. Juntas, elas irão ultrapassar o PIB de grandes potências mundiais. 

Guimarães lembra ainda da vulnerabilidade de sigilo de dados do Facebook, apesar da iniciativa da Calibra. Mas se mostra totalmente seduzido pelo fato das empresas não terem que lidar com questões complexas de câmbio e legislação para operar em inúmeros países, o que seria, sem dúvida, uma grande vantagem para quem realiza negócios com empresas estrangeiras.

Vídeo Courtnay Guimarães sobre a Libra. Fonte: BRQ Digital Solutions

Rosine Kadamani reforça que atitudes fraudulentas são combatidas quando adotado o modelo de blockchain para operar a criptomoeda. A Libra será um modelo descentralizado de moeda. Os registros de transações podem ser acessados por um grupo definido em cadeia e, de modo compartilhado, sem intermédio de terceiros, essa rede validará as transações. O lastro está justamente na reserva de ativos que ficará depositada. 

O caráter verde da Libra é outro ponto a ser destacado. Enquanto transações na criptomoeda Bitcoin podem levar minutos e custar vários dólares, a Libra poderia ser movimentada em segundos e com taxas minúsculas. Uma transação em Bitcoin demanda mais de 1000 kWh de energia computacional, enquanto a geração da Libra não consumirá mais energia do que as transações em cartão de crédito.

Facebook

Um toque no smartphone e alguém do outro lado do mundo receberá dinheiro pelo Facebook Messenger ou WhatsApp. 

Já pensou? Mas como essa transação estará segura? 

São muitas as tecnologias de segurança disponíveis e já utilizadas em outros serviços digitais. O Uber, por exemplo, faz reconhecimento facial de seus motoristas por meio da câmera do celular. A gigante de telefonia Vodafone, que também está no consórcio, pode auxiliar no desenvolvimento de segurança para as transações. Os smartphones já estão sendo fabricados com desbloqueio por biometria; grandes bancos utilizam esse método para acesso às contas de usuários. 

Seja lá qual for, a solução deve ser leve e desenhada para rodar em todos os aparelhos celulares e em situações de redes congestionadas e emergentes. 

Por que a Libra pode dar errado?

Como vai funcionar a regulamentação da moeda em tantos países no planeta? 

Vocês devem lembrar como a aderência ao Uber pelo público não afetou e nem acalentou o coração dos legislativos em todas as nações. A empresa sofreu (e ainda sofre) duras penas e proibições em alguns mercados. Barcelona chegou a proibir o aplicativo, enquanto o Brasil o taxou. 

A Libra promete taxas muito baixas. Mas, e quando ela efetivamente desembarcar nas economias em todos os cantos do mundo? Será que os Governos darão sinal verde para sua adoção? Será que todas estas grandes empresas continuarão no consórcio se não houver regulamentação? 

A The Economist levanta uma hipótese interessante: se cada depositante ocidental transferir um décimo de suas economias bancárias para a Libra, seu fundo de reserva ultrapassaria os US$ 2 trilhões, quase o dobro do valor de mercado da Apple. 

Imagine então se todos usuários do Facebook adotassem a Libra para suas transações financeiras? Ela poderia se tornar uma das maiores instituições financeiras do planeta, esmagando a soberania econômica dos governos.

Para começar a circular em muitos países, a criptomoeda deve ser taxada e seu mote de baixas tarifas pode perder força. Em julho, os Estados Unidos já começaram a movimentação para barrar a Libra no país. De acordo com a Reuters, o Partido Democrata lidera o projeto de lei para proibir qualquer companhia de tecnologia atuar como instituição financeira, limitando seu faturamento anual a US$ 25 bilhões para operar qualquer tipo de criptomoeda. 

O presidente Donald Trump também não gostou da ideia do Facebook lançar uma moeda própria. Ele argumenta que grupos criminosos conseguem arquitetar esquemas de lavagem de dinheiro e tráfico de drogas por meio das criptomoedas. O Facebook já recebeu um aviso para interromper o lançamento da Libra nos Estados Unidos.

A Índia também promete criminalizar a utilização das criptomoedas, enquanto a França acha que a Libra não trará problemas se seu uso for apenas para transações. A Inglaterra teme que a Libra substitua as moedas nacionais. 

Aqui no Brasil já é obrigatória a prestação de contas para a Receita Federal sobre operações de compra e venda envolvendo criptomoedas. As transações devem ser informadas à Receita quando o valor mensal ultrapassar R$ 30 mil. De acordo com a Receita Federal, o mercado de moedas digitais no Brasil já tem mais investidores do que a Bolsa de Valores de São Paulo. Sinal dos tempos.

Mas afinal, a Libra vai ou não existir?

Chris Hughes, cofundador do Facebook, reforça a ameaça que a Libra pode trazer aos bancos centrais mundiais, sobretudo de economias emergentes como o Brasil. Para ele, se o mecanismo de troca de suas moedas oficiais pela Libra acontecer, os governos poderão perder a capacidade de administração de suas políticas fiscais. Essas empresas associadas teriam a faca, o queijo e todo o resto nas mãos.

Mas acredito que, assim como outras tecnologias disruptivas que transformaram mercados tradicionais, a moeda, se lançada, poderá ter adesão dos usuários do Facebook e do WhatsApp, especialmente entre os nativos digitais, que não teriam a menor cerimônia em aceitar e pagar com uma moeda digital. 

É difícil dizer se terá circulação mundial, mas a regulamentação em países de economias mais abertas, acredito, será só uma questão de tempo. Não acredita? Bem, vamos esperar pra ver.

 

(*) Omarson Costa atua como Conselheiro de Administração, com formação em Análise de Sistemas e Marketing,
tem MBA e especialização em Direito em Telecomunicações. Em sua carreira, registra passagens
em empresas de telecom, meios de pagamento e Internet
 

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