Quinta-feira, 17 de fevereiro de 2021, 8h. Um morador em situação de rua dormia encostado à mureta de entrada da estação Trianon-Masp do metrô de São Paulo. Uma cena que, infelizmente, se tornou comum aos paulistanos e que simboliza uma agonia nacional. Trata-se de um cidadão brasileiro, sem emprego e sem moradia, que passa as noites ao relento, na altura do número 1.313 da Avenida Paulista, centro financeiro do País, no Estado mais rico do Brasil, na maior cidade da América do Sul. A cena ocorre em frente à sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), um prédio icônico da paisagem urbana da capital paulista, em formato piramidal. Mais que um cartão postal, ele é emblemático do desenvolvimento econômico do País. Naquele mesmo instante, no 16º andar do edifício, o novo presidente da Fiesp, Josué Gomes da Silva, apresentava suas ideias e projetos para os próximos quatro anos à frente da entidade. Foi sua primeira entrevista desde que se elegeu para o cargo, no final de 2021.

Em sua fala, o industrial mandou uma mensagem para o mercado e também para aquele homem deitado no concreto frio da calçada. “Nós, como sociedade, não podemos admitir que isso ocorra”, disse Josué Gomes, para em seguida criticar a falta de compromisso das lideranças e autoridades brasileiras com os mais vulneráveis e colocar a Fiesp como aliada na resolução dos problemas socioeconômicos brasileiros. “O Brasil parou de pensar, parou de ousar, parou de querer ser grande. Habituou-se à mediocridade. Precisamos reverter isso. Espero que a indústria ajude no processo.” Durante a coletiva, Josué Gomes adotou tom republicano, voltado aos interesses do País, ao mesmo tempo em que mostrou consciência social.

 

A preocupação com o próximo é autêntica. O industrial nasceu no dia de Natal de 1963, em Ubá, cidade de 120 mil habitantes no sudeste de Minas Gerais. Cresceu aprendendo a ver a vida como fazia seu pai, José Alencar (1931-2011), que teve infância humilde, foi alfabetizado em casa e depois tornou-se um dos empresários mais ricos e influentes do Brasil ao fundar a Coteminas, empresa que figura entre os maiores grupos têxteis do mundo. Por sua postura conciliadora e de credibilidade junto ao empresariado, Alencar aceitou o convite do PT para ser vice na chapa encabeçada por Luiz Inácio Lula da Silva na corrida presidencial de 2002. Alencar funcionou como fiador na estratégia petista de acalmar o mercado durante a campanha. Funcionou. A dupla foi eleita naquele ano — e reeleita em 2006.

CRÍTICO Assim como o pai, Josué Gomes foi para a política. Disputou vaga ao Senado por Minas Gerais, em 2014, pelo MDB. Sem sucesso. Ficou na segunda posição. Vitória mesmo teve na eleição para a presidência da Fiesp no ano passado. Foram 97% de adesões à sua candidatura. Pelos próximos quatro anos, nada de eleição, “nem de reeleição à presidência da Fiesp, nem a qualquer cargo público”. Seja pela aproximação de sua família com o petismo, seja por sua própria ideologia política e social, Josué Gomes tem sido um crítico do governo de Jair Bolsonaro. Com o devido cuidado para que a relação institucional entre a Fiesp e o Palácio do Planalto não seja afetada.

O posicionamento do atual presidente da Fiesp contrasta com o do anterior, Paulo Skaf, que ficou 17 anos à frente da entidade e, concomitantemente, fazia política. Apoiou o impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT) em 2016 e aderiu à campanha de Jair Bolsonaro em 2018 — além de ter sido candidato a governador de São Paulo três vezes (2010, 2014 e 2018).

Outra diferença no estilo de gestão em relação ao antecessor é a discrição. Josué tem postura mais reservada. Trabalha com foco e longe de holofotes. Sua visão é institucional. Ainda que protestar contra a carga tributária possa ser parte da agenda da Fiesp, ele dificilmente incorrerá no ridículo de usar como símbolo um pato inflável gigante. Interlocutores do setor industrial avaliam que Skaf saiu maior do que quando entrou. Inflou o pato — e o ego, dizem. Já a Fiesp, ficou menor do que era.

De estilo descentralizador, o novo presidente não gosta de ser chamado pelo cargo. “Quero que me chamem pelo nome: Josué”, disse o empresário. Ele assumiu os negócios da família aos 31 anos, em 1994. Como industrial, sua trajetória é admirável. Como líder setorial, tem a árdua missão de devolver à indústria o protagonismo de outrora e criar as bases da reindustrialização do País. Em 1985, a indústria de transformação representava 24,48% do Produto Interno Bruto (PIB), segundo estudo do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV), com dados do IBGE. De lá para cá, a queda foi vertiginosa, até atingir, em 2021, o patamar de 9,57%, a menor participação desde 1947, quando iniciou a série histórica. A indústria no geral — que inclui a indústria extrativa, de transformação, construção, eletricidade e gás — tem 20,4% de participação no PIB, enquanto a carga tributária gira em torno de 34%, a quarta maior entre 109 países, segundo relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O encargo médio global sobre a receita das companhias é de 20%.

Diante desse cenário retraído, um dos três pilares do projeto de Gomes à frente da Fiesp é batalhar junto ao Congresso e ao governo federal pela reforma tributária. “A alíquota calibrada para baixo provoca aumento da produtividade e da arrecadação”, disse. Para Samuel Pessôa, professor de economia e pesquisador Ibre-FGV, a indústria é de fato um setor sobretributado. “Paga mais do que outros setores. Tem de haver reequilíbrio.” Além da alta carga de impostos, há complexidade no sistema de tributação, que gera mais custos, de acordo com Igor Rocha, contratado por Josué para ser economista-chefe da Fiesp. “Algumas empresas têm área tributária maior do que a área comercial. Sinal de que tem alguma coisa de errado.”

O PATO DE SKAF O ex-presidente da Fiesp Paulo Skaf pularizou campanhas da entidade e se promoveu na política (Crédito:Ed Ferreira)

O segundo pilar do choque de gestão de Gomes é a educação. Em seu plano, o Serviço Social da Indústria (Sesi) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), que possuem 230 unidades no estado de São Paulo, irão ajudar no ensino público de duas formas: abrindo laboratórios e estruturas para alunos das redes estadual e municipais e levando cursos para as escolas públicas. “Temos meta de formar ao longo dos próximos quatro anos 200 mil jovens em tecnologia”, disse Gomes. A Fiesp também quer ser parceira de outras instituições privadas para massificar a formação de qualidade. Entre as parceirias já iniciadas estãoTodos pela Educação, Instituto Ayrton Senna, Itaú Social e Fundação Lemann. “Precisamos dar as mãos. Educação forte é indústria forte, é País forte.” Para tocar esse projeto, Gomes contratou Wilson Risolia, que foi secretário-geral da Fundação Roberto Marinho e secretário da Educação do Rio de Janeiro. Segundo Risolia, é preciso fazer mais em menos tempo, com menor custo. “O desafio é tão grande que uma ação isolada não vai resolver. Tem de haver esforço coletivo para virar esse jogo.” O governo estadual e cidades importantes já foram contatados para firmar convênios.

O terceiro alicerce do projeto é aumentar a produtividade. O objetivo é apoiar 40 mil pequenas e médias — das 46 mil indústrias ativas em São Paulo — com consultoria, auxílio em processos de digitalização, acesso facilitado a financiamentos e preparação para exportação de produtos. “Vamos ajudar as empresas a inovar”, afirmou Gomes.

Com menos impostos, mais educação e apoio às empresas, o presidente da Fiesp quer “transformar o Brasil em uma nação mais próspera, mais rica e dar dignidade para nossa população”. Para não vermos mais tantas pessoas dormindo ao relento em plena Avenida Paulista.

ENTREVISTA
Josué Gomes, presidente da Fiesp

“O País continua, não vai acabar, independentemente de quem seja eleito”

De que forma a Fiesp pode usar sua influência para ajudar na redução da desigualdade?
Economia é meio. O fim é o homem. Óbvio que tem meios para atingir isso. Alguns entendem que é o Estado mínimo; outros, o Estado grande. Eu entendo que é o Estado necessário, que planeja e induz o desenvolvimento. Com eficiência para ajudar a indústria. O fim é promover a dignidade dos brasileiros.

Recentemente no mercado havia o discurso de que uma eventual eleição do ex-presidente Lula poderia gerar fuga de capitais. Como o sr. vê a possível eleição de Lula?
Esse temor quanto à eleição do candidato A ou B não deveria haver. Se queremos que a população brasileira tenha dignidade, como vamos questionar o voto dessa população? A decisão da população é soberana. Não existe isso de risco para o País. No fundo, o País continua, não vai acabar, independentemente de quem seja eleito. O Brasil é forte e as instituições são fortes.

O sr. como pessoa física tem simpatia pela candidatura do Lula?
Minha opinião pessoal não contribui em nada, até porque não tem impacto ao exercer minha condição de presidente da entidade.

Depois de quatro anos difíceis, econômica e politicamente, uma reeleição de Bolsonaro seria ruim para o Brasil?
Provavelmente, o que os livros de história vão registrar sobre o atual período é um governo que produziu muitos ataques às instituições, às vacinas, à Anvisa, à urna eletrônica, ao TSE, à imprensa… Se ele ganhar o segundo mandato, tem chance de passar para a história com uma outra imagem do que essa. Torço para que ele faça diferente.

Hoje não há uma política industrial no Brasil. Quais são as prioridades e as metas da entidade no diálogo com o governo federal?
O mais importante diálogo do governo federal é em relação à reforma tributária. Para ser muito sincero, não vai ser aprovada nos próximos meses. Temos de construir uma reforma junto com o Congresso e com o Executivo, e junto com os candidatos que podem ser eleitos, para aprovar no fim do ano.

Como vê a alta de juros e a perspectiva de crescimento da indústria nesse cenário?
Não podemos dizer que os juros não tratam a doença da inflação. Mas é aquela história: não me parece ser a prescrição mais adequada para a inflação de custos, de aumento de commodities. O Brasil parece que gosta de usar a medicação em doses maiores, talvez por resquícios de indexação, pelo histórico de convício com a inflação. O problema é o custo-benefício, porque vai trazer malefícios para economia. Já há preocupação do governo na indústria da construção civil com essa taxa de juros. Se ela for rápida, pode ser que consiga trazer a inflação para baixo e produzir menos impactos adversos na economia, inclusive na dívida pública, em que estamos pagando quase 10% do PIB de juros. Tem de ficar (alto) por pouco tempo, porque vai diminuir o ritmo da atividade econômica. Inflação é trágico, principalmente em alimentos e energia, pune as famílias mais fragilizadas. Temos de tentar trazer a situação para baixo o mais rápido possível. Não é apenas com juros que isso vai se acertar.