Pesquisar, comparar, clicar… E pronto. Sua compra foi concluída com sucesso. Nunca se comprou e se vendeu tanto pela internet quanto nos últimos dez meses de isolamento social e de restrição do comércio nas ruas e nos shoppings no País. Por comodidade, precaução ou simplesmente por falta de opção, a demanda do e-commerce tem superado em 2020 todas as projeções que se tem notícia. Na primeira metade deste ano, o varejo virtual disparou 47% na comparação com o mesmo período de 2019, a maior alta do setor em duas décadas, segundo levantamento da Ebit/Nielsen. Em cifras, as vendas chegaram a R$ 38,8 bilhões entre janeiro e junho de 2020, contra R$ 26,4 bilhões do mesmo intervalo de um ano antes. Um movimento que desperta a cobiça, em gênero, número e grau, em qualquer empresário que busca uma rota alternativa para crescer em meio à tempestade econômica. Apenas neste ano, 7,3 milhões de brasileiros – o equivalente a uma Hong Kong ou quase aos 8,3 milhões da população da Suíça – compraram pela primeira vez por meio de computadores, tablets ou aplicativos de smartphones, dentro de um universo de 41 milhões de consumidores ativos no ambiente pontocom. Uma nova pequena nação de clientes dispostos a gastar dentro de um grande País cheio de consumidores que não sabem se vão poder comprar.

É nesse clima de expansão em ritmo chinês que a líder do setor na América Latina, o Mercado Livre – companhia de origem argentina que fez do Brasil a fonte de 55% de suas receitas –, registra neste ano os melhores resultados desde que foi criada, em 1999. Apenas no terceiro trimestre (julho a setembro), período marcado pela escalada recorde do desemprego, embates políticos em torno do auxílio emergencial e projeção de retração de 5% do Produto Interno Bruto (PIB) anual, a companhia comandada pelo executivo Stelleo Tolda registrou um salto de 117,1% nas vendas na comparação com o mesmo período de 2019, superando US$ 5,9 bilhões em apenas três meses. Com isso, a receita líquida alcançou US$ 1,1 bilhão, alta de 148,5% na moeda brasileira. “Estou nesse mercado há 21 anos e nunca havia registrado um crescimento tão forte, num período tão curto”, afirmou à DINHEIRO o presidente da empresa na América Latina. “Quanto mais vendedores e consumidores entrarem para o comércio on-line, mais a experiência de compra vai evoluindo.” No acumulado de janeiro a setembro, as vendas no site chegaram a US$ 14,3 bilhões, alta de 41,5% sobre os US$ 10,1 bilhões dos nove primeiros meses de 2019.

Passo a passo, o Mercado Livre lapida uma empresa com status de uma Amazon da América Latina. Sozinha, a companhia possui uma base de 76,1 milhões de usuários únicos ativos, quase o dobro de todo e-commerce brasileiro, comparativamente. Essa multidão de clientes, registrada no fim de setembro, corresponde a um nada modesto crescimento de 92,2% no confronto ao total contabilizado em 2019. “O desempenho só reforça a convicção que já tínhamos antes da pandemia, de que, entre as maiores economias do mundo, o Brasil é o único, dadas a sua dimensão e escala, que tem capacidade de dobrar de tamanho o e-commerce em poucos anos”, afirmou Tolda, ao celebrar o aumento da fatia do comércio eletrônico em relação ao total do varejo de 6%, no início do ano, para aproximadamente 10% hoje. Nas projeções da consultoria NeoTrust, na China o comércio on-line se aproxima de 30%, enquanto nos Estados Unidos está entre 17% e 19%. Para André Dias, diretor da Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (ABComm) e CEO da Neotrust/Compre&Confie, há uma mudança transformadora em curso. “Com aumento da capilaridade das vendas, entrada de milhares de novos consumidores e lojistas, além da diversificação do mix de produtos comercializados na internet, tudo poderá ser comprado via e-commerce, desde produtos de farmácia até itens básicos de supermercado”, disse Dias.

COM A FORÇA DO ON-LINE A operação brasileiro do Mercado Livre, com sede em São Paulo, responde por mais da metade das receitas da companhia na América Latina. (Crédito:Divulgação)

INFORMALIDADE Os números anabolizados do e-commerce e do Mercado Livre se explicam também pelo “impulso empreendedor” que a crise e o desemprego geraram na economia brasileira nos últimos meses. De julho a setembro, foram registrados 303,9 milhões de anúncios no site, 22,3% a mais do que no terceiro trimestre de 2019, dos quais 205,7 milhões foram efetivamente vendidos, alta de 109,9% em relação ao mesmo período do ano passado. Esse movimento exponencial foi puxado, principalmente, por pequenos e médios varejistas, que puderam expor qualquer produto na plataforma – novo ou usado. Durante a pandemia, mais de 40 mil vendedores foram formalizados para o marketplace da companhia. O que reflete também um ambiente de precarização do mercado formal, em que trabalhadores que perderam o emprego com carteira assinada se tornaram micro e pequenos empreendedores. Segundo dados do Portal do Empreendedor, do governo federal, o número total de registros de Micro Empreendedores Individuais (MEIs) atingiu 10,8 milhões em setembro, um contingente com mais de 1 milhão de pessoas em relação aos 9,7 milhões de março, o último balanço divulgado antes do início da pandemia. Renan Mota, fundador da Corebiz, empresa especializada em marketing e comércio on-line, disse que o Mercado Livre consolidou uma importância enorme para pequenos vendedores. “Assim como também respondeu por um grande impacto nas vendas totais de empresas grandes, que aproveitam a grande circulação de usuários para vender seus produtos de forma integrada”, afirmou.

Essa integração do comércio físico com o digital é vista como o fator determinante entre o sucesso e o fracasso das empresas na nova economia. O próprio presidente do Mercado Livre, um dos maiores interessados – se não for o maior – na consolidação do e-commerce no País, não enxerga na internet o fim das lojas tradicionais. “Basta olhar para o mercado para perceber que as empresas que estão fazendo mais sucesso hoje são as que estão sabendo integrar, como negócios complementares e não concorrentes, as operações físicas e as digitais”, disse Tolda.

Essa complementaridade dos negócios tem sido, na avaliação de especialistas, o Santo Graal do varejo no Brasil. Para Gabriel Lima, CEO da Enext, empresa do grupo WPP especializada em estratégias digitais e a maior agência investidora no Mercado Livre Ads no Brasil, existem três categorias de empresas no turbilhão da revolução digital do comércio: as tradicionais que persistem no off-line, as tradicionais em processo de transformação digital e as nativas digitais. “As primeiras serão as que mais desafios terão para superar a crise e muitas delas não sobreviverão”, afirmou Lima. “As empresas têm muito interesse de fazer o e-commerce funcionar, com cost-effective e ganhos de escala. Magazine Luiza, Mercado Livre, B2W, Via Varejo e outros vão continuar investindo no canal, pois estão vendo seus resultados crescerem e sua valorização ir às alturas.”

CENTROS DE DISTRIBUIÇÃO O Mercado Livre vai inaugurar cinco dos hubs logísticos em 2021, decisão que vai dobrar a capacidade atual da companhia. (Crédito:Vinicius Stasolla)

LOGÍSTICA Integradas ou não, as vendas do varejo on-line dependem, primordialmente, da capacidade das empresas em entregar na porta do consumidor o que foi adquirido. E nessa questão logística o Mercado Livre está com lente microscópica. Mesmo ocupando hoje a primeira colocação na lista dos maiores clientes dos Correios, que obtém do Mercado Livre 15% de todas as suas receitas (que no ano passado somaram R$ 18,3 bilhões) com entrega de cargas, está em curso um intenso processo de internalização da logística da companhia. Há três anos, o Mercado Livre dependia dos Correios para 90% de suas entregas – risco considerável por se tratar de uma empresa que ficou seis semanas em greve neste ano, em plena pandemia. Atualmente, esse percentual é de cerca de 20%, e com viés de baixa.

Embora não associe um fato ao outro, Tolda capitaneou o lançamento, no começo deste mês, de sua própria estrutura de distribuição aérea, com a criação da Meli Air. Com uma frota de quatro aviões dedicada exclusivamente às entregas, e voos operados por diferentes companhias aéreas, o Mercado Livre aumenta sua capacidade de entregas em até dois dias – o que já acontece com 80% de tudo que a empresa vende, em 1,8 mil cidades brasileiras – ou em 24 horas para capitais e regiões metropolitanas. “A logística é, sem dúvida, um dos maiores pontos de fricção para o avanço das vendas em um país de dimensões continentais”, disse o presidente do Mercado Livre.

Dentro da estratégia de fortalecer sua própria operação de entregas, na quinta-feira (12) a empresa anunciou a abertura de cinco novos centros logísticos no Brasil: três em São Paulo (dois em Cajamar e um em Guarulhos), um em Governador Celso Ramos (SC) e um em Extrema (MG). Quatro dos cinco centros servirão à modalidade chamada de fulfillment, quando o estoque dos vendedores é totalmente gerenciado pelo Mercado Livre, desde o armazenamento até a entrega ao cliente. Um dos CDs será na modalidade de cross-docking, entreposto em que o Mercado Livre coleta encomendas, preparadas pelos próprios vendedores, e entrega aos compradores. As novas operações, cujas atividades estão previstas para começar até início de 2021, irão agregar 340 mil m2 à malha logística 100% gerenciada pelo Mercado Envios, braço logístico do Mercado Livre, duplicando a capacidade de armazenamento e de processamento de encomendas.

UMA FROTA PRÓPRIA Para reduzir o tempo de entrega em regiões mais distantes e dar mais segurança ao processo logístico, a empresa alugou aviões exclusivos para sua operação. (Crédito:Divulgação)

MERCADO PAGO De todas as frentes de negócios traçadas pelo Mercado Livre, o braço financeiro é o que mais tem feito brilhar os olhos dos executivos da empresa. Embora já tenha emprestado mais de R$ 4 bilhões em 10 milhões de transações nos últimos três anos, a fintech criada para dar mais segurança às transações de compra e venda da plataforma recebeu, na segunda-feira (9), a autorização do Banco Central para atuar como instituição financeira. Com isso, a empresa não precisará de instituições intermediárias para conceder crédito.

A autonomia maior do chamado Mercado Crédito permitirá que se ofereça nos produtos e serviços financeiros via marketplace. No futuro, inclusive, opções de investimento. Tulio Oliveira, vice-presidente do Mercado Pago e responsável pelo planejamento da fintech, disse que a licença de instituição financeira permitirá reforçar o foco da companhia em expandir as operações de crédito dentro de seu ecossistema. “Esse movimento reforça também a estratégia da companhia em se consolidar como uma das principais fintechs da América Latina, chegando ao maior número possível de brasileiros, fomentando a inclusão financeira de maneira completa, inclusive com acesso a crédito digital e facilitado”, afirmou Oliveira.

Turbinado pela pandemia e em sintonia com os resultados do grupo, o Mercado Pago também registrou no terceiro trimestre resultados recordes. O volume total de pagamentos alcançou US$ 14,5 bilhões, aumento ano a ano de 91,7% em dólar e 161,2% em reais. O total de transações cresceu 146,6% em relação ao mesmo período do ano passado, totalizando 559,7 milhões no período de julho a setembro. Apenas no Brasil, as transações na conta Mercado Pago atingiram US$ 3,2 bilhões, alta de 380,5% ano a ano. A base de pagadores ativos da carteira cresceu 125,2% em relação ao terceiro trimestre de 2019, chegando a 13,7 milhões de pagadores únicos durante o período. Diante desse desempenho recorde, com multiplicação das vendas, frota própria e expansão de concessão de crédito por meio de seu banco, o Mercado Livre blinda seu espaço dentro do cada vez mais concorrido e-commerce brasileiro. Seja por terra, por mar ou pelo ar.

ENTREVISTA: “Queremos estar na privatização dos Correios”
Stelleo Tolda, presidente do Mercado Livre na América Latina

Carlos Della Rocca

A pandemia gerou sustos para o Mercado Livre nos últimos meses?
Com certeza. No geral, 2020 vai terminar excelente, mas nem por isso será um ano sem sobressaltos. A gente começou bem, com um plano de crescimento importante, mas assim que as quarentenas começaram em vários países na América Latina, no final de março, houve um movimento menor. A demanda era por máscaras, álcool gel e termômetros, mas com um consumidor distraído com relação a outras compras. A partir de abril, o consumidor entendeu que a pandemia ia durar e passou a usar o e-commerce com mais frequência. O plano de tínhamos antes da pandemia era de crescer um pouco mais da média de 20% do mercado, mas estamos muito acima disso no Brasil, mais de 70% no terceiro trimestre.

O que a frota própria agrega de vantagem à logística da empresa?
Agrega velocidade na entrega. O consumidor on-line quer essa conveniência. Essa rede logística está se tornando um grande ativo. Uma entrega na região Norte do Brasil, que por rodovia levava dias, estamos conseguindo atingir em questão de horas. Estamos trabalhando para aumentar esse volume. Quanto maior a carga dos aviões, mais eficiente ele é para nós. O custo unitário de uma caixa diminui conforme a gente injeta mais volume na malha logística. O Mercado Livre tem trabalhado nos pontos de fricção, naquilo que tornava a transação mais difícil. Por isso criamos o Mercado Pago e estamos trabalhando nossa malha de distribuição. Nos últimos anos, estamos tirando volume de entrega dos Correios e trazendo para dentro da nossa malha logística.

Como maior cliente dos Correios, a provável privatização da estatal no ano que vem é atraente para o Mercado Livre?
Queremos, sim, estar na mesa de negociações na privatização dos Correios, quando as regras estiverem definidas. O Mercado Livre, apesar de ter diminuído o percentual de 90% para 20% nos últimos anos, ainda é o principal cliente de encomendas dos Correios, com base nos números de 2019. Não vamos liderar nenhum consórcio, mas nosso volume é uma garantia de que vamos continuar trabalhando com os Correios, algo que vai interessar a qualquer comprador possível. Uma das coisas que nos incomoda, como empresa privada é muitas vezes ficarmos sujeitos a greves. A deste ano, em particular, demorou seis semanas e, sem dúvida, teve um impacto nas operações.

O Mercado Livre poderia atuar como operador de logística de produtos vendidos fora da plataforma?
Sem dúvida. Esse é um ponto importante. A gente tem procurado nos últimos anos democratizar o comércio. Essa visão passa por trazer ferramentas para o pequeno varejo. Por ora, o foco da nossa logística ainda está sendo em vendas que acontecem dentro do nosso marketplace.

A concorrência com gigantes chineses, como AliExpress e a Wish, preocupa?
Não preocupa. Já estamos num mercado altamente competitivo. Já tivemos players do Japão, com a Rakuten, ou mesmo com a Amazon já atuando aqui há muitos anos. Nossa capacidade de entregar 80% das vendas em até dois dias supera, de longe, qualquer coisa que uma empresa chinesa consegue oferecer. O consumidor brasileiro exige um nível de serviço muito bom. O Brasil é um grande campo para o e-commerce e, entre os maiores mercados do mundo talvez seja o único que tem potencial para dobrar daqui a alguns anos.

Empresários do varejo classificam o Mercado Livre como um imenso “camelódromo digital”, com vendas sem notas ou de origem duvidosa. Procede?
Falando pelo Mercado Livre, essa percepção é falsa. Os investimentos que temos feito na nossa malha logística obrigatoriamente têm formalizado vendedores. Tudo sai com nota fiscal. Então, para mim, as críticas revelam que muitos não entendem como isso funciona. Menos de 5% das nossas vendas são de pessoas físicas. O que o varejo tem visto é a necessidade de se digitalizar.

O Mercado Pago será um banco?
A gente não gosta de dizer isso. As pessoas não querem mais bancos. Querem melhores serviços financeiros. Então, esse é o nosso foco, com opções de pagamento, de crédito e seguros. Nesse sentido, a gente concorre com bancos tradicionais e fintechs.