“Pois eu tive fome, e vocês me deram de comer; tive sede, e vocês me deram de beber; fui estrangeiro, e vocês me acolheram.” Esse trecho da Bíblia, descrito em Mateus 25:35, é diariamente recitado pelo empresário curitibano Carlos Wizard Martins, 62, fundador da rede de escolas de idiomas Wizard e atual presidente do Grupo Sforza. A holding controla, entre mais de uma dezena de empresas, operações como Pizza Hut, KFC, Taco Bell e Mundo Verde. Mas sua rotina, nem de longe, se assemelha à de um homem de negócios comum.

Pontualmente às 6h da manhã, o versículo bíblico é uma fonte de inspiração para aquela que Wizard considera ser a maior de todas as suas missões: acolher e auxiliar refugiados venezuelanos na fronteira. “Deus me deu a missão de ajudar esses estrangeiros, que fogem da fome e da miséria, a ter a chance de um recomeço e a uma vida digna”, disse o empresário à DINHEIRO, em um dos 13 campos de acolhimento instalados pelas Forças Armadas no estado. “Com gestão empresarial, vou esvaziar todos os abrigos de Roraima.”

Obras: militares das Forças Armadas coordernam o trabalho de infraestrutura, cadastramento e logística em Roraima (Crédito:Claudio Gatti)

Dono de uma fortuna avaliada em R$ 2,4 bilhões, o fiel da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, mais conhecida como Igreja Mórmon, trocou o conforto da sua mansão em Campinas, no interior paulista, por um apartamento de classe média no único edifício residencial do centro da quente e úmida Boa Vista. Ao lado da esposa, Vânia, o bilionário lidera a maior iniciativa privada de ajuda humanitária em curso no País. Desde que chegou ao extremo-Norte, em julho do ano passado, Wizard já acolheu e encaminhou 4 mil venezuelanos para centenas de cidades brasileiras. Este total constitui 20% dos cerca de 20 mil refugiados da ditadura de Nicolás Maduro em solo brasileiro. Detalhe: apenas 10 mil estão alojados, enquanto a outra metade perambula pelas estradas de Roraima e dorme em locais improvisados, como rodoviárias e praças.

As alternativas no estado são escassas. Roraima não tem indústrias ou grandes empresas e 80% dos trabalhadores formais são servidores públicos. Aqueles exilados que conseguem uma cobiçada vaga de trabalho em outra região seguem para uma das unidades de empresas parceiras da iniciativa de Wizard, como Seara, JBS, BRF e Transpanorama, grupo de logística do Paraná que acaba de recrutar 30 motoristas entre os profissionais do país vizinho. “Meu trabalho tem sido mais estratégico, de articular com outros empresários a interiorização dessas pessoas, encontrando para elas um lugar para viver e um emprego para que possam dignificar suas famílias”, conta.

Novo caminho: Marco Antonio e Yuri caminharam mais de 200km com os filhos até encontrar abrigo em Boa Vista (Crédito:Claudio Gatti)

Um dos primeiros empresários a aderir à proposta de Wizard foi o irmão de fé David Neeleman, fundador e chairman da Azul Linhas Aéreas. Pelo acordo, todos os assentos vagos de voos que partem de Boa Vista são ocupados por refugiados. A iniciativa samaritana levou as rivais Gol e Latam a adotar a mesma medida, o que garante a saída de 35 estrangeiros, em média, por dia da capital roraimense, nos três voos diários que decolam da cidade a cada 24 horas. Outra centena de venezuelanos segue de ônibus por 785 quilômetros até Manaus em uma viagem de até 11 horas. De lá, partem 30 voos diários. “Quase todos os dias, recebo contato de empresários de todo o País interessados em contratar refugiados”, garante Wizard. “Percebo que existe demanda e vontade em absorver essa mão de obra e, ao mesmo tempo, contribuir para a construção de uma sociedade mais justa”, completa o empresário, que pretende ficar em Roraima até julho do ano que vem.

Junto com ele, mais de dez instituições filantrópicas e religiosas participam da empreitada, cada uma a seu modo. Entre elas estão a Caritas Internacional, ligada à Igreja Católica, Rotary Internacional, Maçonaria e Lions Club, além de outras denominações cristãs como Batista, Universal do Reino de Deus, Sara Nossa Terra, Igreja Mundial do Poder de Deus, Assembleia de Deus e Mórmons. “Aqui ninguém fala em doutrina ou em religião, apenas em acolhimento e ajuda humanitária.” No final do ano passado, o empresário do ramo de importação e exportação Michael Aboud, pastor da Embaixada do Reino de Deus, levou, de uma só vez, 250 imigrantes venezuelanos para Santa Catarina em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB).

Em busca de Refúgio: todos os dias, cerca de 800 venezuelanos cruzam a fronteira (Crédito:Claudio Gatti)

A força-tarefa filantrópica orquestrada por Wizard também tem a chancela das ONGs que participam do suporte aos estrangeiros e das Forças Armadas, responsável por toda infraestrutura, cadastramento e organização da “Operação Acolhida”. Como a maioria precisa de assistência com documentação, abrigo, alimentação e assistência médica, a ACNUR, agência da ONU para Refugiados, está trabalhando com o governo brasileiro e organizações parceiras para atender a essas necessidades. A demanda é urgente. O número de venezuelanos que buscam refúgio em todo o mundo aumentou 2.000% desde 2014. No ano passado, o crescimento foi particularmente acentuado nas Américas, inclusive no Brasil, que recebe mais de 800 venezuelanos por dia. Desde o começo do ano passado, estima-se que 40 mil pessoas tenham entrado no País por Roraima. Parte se fixou no Brasil, parte seguiu para outros países da América do Sul, como Chile, Peru e Argentina.

ORÇAMENTO Nos últimos 12 meses, o governo federal desembolsou mais de R$ 260 milhões para apoiar as ações militares no local. Esse orçamento equivale a mais que o dobro da média anual que o Brasil dedicou às operações no Haiti, entre 2004 e 2017. Na média, nos 13 anos da missão no país caribenho, foram injetados R$ 130 milhões por ano pelo Brasil. De acordo com o Ministério da Defesa, o presidente Jair Bolsonaro sinalizou que serão feitos mais investimentos na região da fronteira, voltados principalmente à defesa e ações de auxílio aos refugiados. “Não estamos aqui para fazer da crise uma situação permanente, mas para realizar o cadastro, auxiliar na busca de vagas e organizar a logística desse contingente”, afirma o coronel Souza Coelho, militar do Exército responsável pela operação de interiorização dos refugiados. “A geração de oportunidades para esses venezuelanos precisa viralizar em todo o País para que o objetivo do trabalho seja alcançado.”

Esperança: os campos de refugiados, que mantém cerca de 10 mil venezuelanos, fazem o encaminhamento para vagas de trabalho (Crédito:Claudio Gatti)

Uma das frentes de Wizard é a gestão de uma plataforma digital que une empresas contratantes e refugiados, o site Brasildobem.com.br. Nele, os cadastrados buscam ou oferecem, basicamente, três tipos de auxilio: vaga de emprego, casa para acolher uma família desabrigada ou a colaboração com o pagamento de aluguel de até R$ 500 por mês. “Não recebo nenhum centavo por isso. Lidar com dinheiro dá muito trabalho. É preciso documentar, contabilizar, comprovar, controlar e reportar”, afirma Wizard. “O que eu faço é conectar quem doa com a pessoa que recebe o auxílio. Assim, nada passa pelas minhas mãos.” Além da plataforma digital, ele lançou um canal de atendimento por WhatsApp, muitas vezes respondido por ele mesmo ou sua esposa.

Em São Paulo, um programa semelhante ao de Wizard tem ajudado a inserir refugiados no mercado. O Programa de Apoio para a Recolocação dos Refugiados (PARR), primeiro projeto no Brasil voltado à inserção de exilados, acaba de ultrapassar a marca de 2,7 mil currículos cadastrados. Em oito anos, foram 1.223 encaminhamentos para entrevistas, 298 contratações efetivas e 240 empresas parceiras. Com o aval da ONU, a iniciativa foi idealizada pela EMDOC, consultoria especializada em serviços de mobilidade global, sendo o único projeto social criado e subsidiado inteiramente por uma empresa privada. Refugiados das mais diversas nacionalidades já solicitaram o auxílio do PARR ao longo desse tempo. “No primeiro semestre, os venezuelanos lideraram a busca por trabalho, com 52,9% dos 339 atendimentos. A crise política e econômica na Venezuela intensificou a migração para o Brasil. É um desastre humanitário sem precedentes”, disse o presidente da EMDOC e coordenador do PARR, João Marques. Mas no ranking geral, os venezuelanos ainda correspondem a 14,6% dos cadastrados, aparecendo na terceira colocação, atrás de Angola (21,6%) e Congo (20,1%), mas à frente de Nigéria (11%) e Síria (5,5%).

Sonho brasileiro: o pedreiro Jean Carlos Vallera aguarda uma oportunidade para se mudar para o Rio de Janeiro ou São Paulo (Crédito:Claudio Gatti)

A situação vivida pelos venezuelanos em Roraima extrapola os patamares de dificuldades enfrentados pela maioria dos brasileiros, mesmo os mais pobres. Um dos exemplos é a família de Marco Antonio Lopez Dias, de 28 anos. Depois de enfrentar a fome em seu país, ele caminhou por mais de 200 quilômetros com a esposa, Yuri Nayroviz, grávida de oito meses, e dois filhos, até chegar a um alojamento na capital roraimense. “Consegui chegar ao abrigo do governo em Boa Vista há dois meses. Desde então, com três refeições diárias que estamos recebendo, recuperei 30 quilos do meu peso”, afirmou ele, hoje com 80 quilos. Em sua cidade, San Félix, Dias recebia 18 mil bolívares por mês para trabalhar como operador de máquinas. A remuneração é equivalente a R$ 3. “Era um mês inteiro de trabalho para conseguir comprar um saco de arroz ou alguma batatas”, relembra. “Teríamos morrido de fome ou doença se não tivéssemos saído.”

MISÉRIA Drama semelhante ao de Dias é da artesã Maria Perez, 58, que abandonou o município de Caroní, ao Norte da Venezuela, para tentar alimentar sua filha e quatro netos. “Nos dois anos em que estou vivendo no Brasil, consigo comer com a venda dos meus artesanatos. No meu país, como o dinheiro não vale nada, ninguém compra o que não é essencial.” Já Jean Carlos Vallera, 38, há um ano deixou a capital Caracas com a mulher e os três filhos à procura de uma vida melhor no Brasil. Depois de ser acolhido por um abrigo de Boa Vista, oferece seus serviços de pedreiro nos semáforos da cidade. Seu objetivo, no entanto, é conseguir uma vaga em São Paulo ou Rio de Janeiro. “Para nós, o melhor lugar do mundo para viver é a Venezuela, mas a situação lá nos condena à miséria. Por mais que eu trabalhasse, o dinheiro não era suficiente nem para comer”, diz Vallera. “Aqui temos comida, teto e a solidariedade do povo brasileiro que compreende que não estamos tirando emprego de ninguém, mas apenas tentando sobreviver.”

A julgar pelos números, a declaração de Vallera, faz sentido. A presença de estrangeiros imigrantes no País é insignificante em proporção à população. Pelos dados mais recentes da ONU, referentes a 2014, o Brasil precisaria ter 5 vezes mais imigrantes para alcançar a média latino-americana, 10 vezes mais para alcançar a média mundial e 50 vezes mais para se igualar à media da América do Norte e Oceania. Enquanto o percentual no País é de 0,3%, na Europa é de 9,5%, nos Estados Unidos e de Canadá chega a 14,2% e na Oceania, principalmente na Austrália e Nova Zelândia, supera 16,8% (confira o gráfico). “Ao longo do último século, o Brasil passou de um País mentalmente aberto para um País mentalmente fechado”, diz o professor e historiador Ricardo Paes de Barros, economista-chefe do Instituto Ayrton Senna. Iniciativas de inclusão como a do empresários Carlos Wizard podem tornar o Brasil mais promissor para estrangeiros.