Criada em 1991, a Lei Rouanet trouxe um alento para a produção cultural brasileira ao permitir o financiamento privado de projetos em troca de renúncias fiscais. Na época, o segmento sofria com o desmonte promovido no início do governo de Fernando Collor de Mello. Em uma política que foi vista como uma retaliação à falta de apoio da classe artística à sua candidatura, o então presidente havia tomado medidas como a extinção do Ministério da Cultura e o fim da Embrafilme. Nas décadas seguintes, a lei se tornou o principal instrumento de fomento às artes no País. Esse papel fundamental, no entanto, foi duramente questionado na última eleição.

O mecanismo se tornou protagonista de um dos debates mais agressivos que dominaram o pleito. Artistas e empresários do setor assinaram um manifesto contra Jair Bolsonaro. Em resposta, o candidato do PSL e seus eleitores contra-atacaram, afirmando que eles vendiam seu apoio em troca de patrocínio, especialmente durante os governos do PT. A acusação reforçou o que já era disseminado há tempos nas redes sociais. Para seus detratores, a lei se vale de dinheiro de impostos federais para dar uma boa vida a artistas. Não é bem assim que a coisa funciona.

Henrique Medeiros, secretário da Cultura: “A proposta não é enfraquecer a Lei Rouanet, mas obviamente ter melhoramentos nos controles”

A vitória de Bolsonaro guarda paralelos com a era Collor. Ainda durante a campanha, o capitão da reserva afirmou que acabaria com “os milhões do dinheiro público financiando famosos sob falso argumento de incentivo cultural”. Logo depois da posse, extinguiu o Ministério da Cultura, agora incorporado ao novo Ministério da Cidadania e com status de Secretaria, liderada por Henrique Medeiros Pires. Procurado, o órgão não retornou os pedidos de entrevista à DINHEIRO.

Na contramão desse cenário pouco favorável, as primeiras declarações de Pires trouxeram um tom mais conciliador. “A proposta não é enfraquecer a (a Lei Rouanet), mas obviamente deve ter melhoramentos nos mecanismos de controle, uma atenção nas prestações de contas”, afirmou o secretário, no dia em que assumiu o cargo. Em entrevista concedida nesta semana ao jornal Zero Hora, ele reforçou que a lei é o melhor instrumento de fomento que existe, acrescentando que não haverá modificações em sua essência. E comentou algumas das propostas que está avaliando para aprimorar o mecanismo. Entre elas, a possibilidade de reduzir o teto de valor aprovado para cada projeto, de R$ 60 milhões para cerca de R$ 40 milhões. “Esses R$ 20 milhões poderiam ser distribuídos para um número maior de projetos”, observou.

BONS SINAIS O discurso teve um efeito positivo. “O fato de ele ressaltar a relevância da lei é simbólico”, diz Fábio Cesnik, sócio do CQS Advogados, escritório especializado no tema. Ele destaca que, como qualquer outra regulamentação, a Rouanet precisa de ajustes. Mas que é preciso ter em mente seu caráter essencial, não apenas em termos de preservação e de divulgação das manifestações artísticas, mas também por seu potencial econômico. Um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) reforça essa tese. Segundo a pesquisa, a cada R$ 1 investido, a lei gerou R$ 1,59 para a sociedade. No total, de acordo com o cálculo da FGV, entre 1993 e 2018, os projetos culturais financiados por esse instrumento injetaram mais de R$ 49,7 bilhões na economia. Ao mesmo tempo, houve avanços na aplicação da lei, como por exemplo, a redução substancial no passivo de prestações de contas; a transparência e o controle nesses processos; e a maior velocidade para aprovação. Com um novo sistema online, esse tempo foi reduzido de 200 para 40 dias.

Letícia Tourinho, proprietária da Gaia Oficina de Cultura, que atua na elaboração, captação e gestão de projetos e economia criativa, também enxerga algumas boas perspectivas nas falas de Pires. Com um portfólio fortemente baseado em musicais, como “A Noviça Rebelde” e “Elis, a Musical”, ela entende que a proposta de estabelecer um teto é uma alternativa para corrigir algumas distorções. E usa o seu próprio carro-chefe como exemplo. “Como a lei pode aprovar o mesmo valor para um musical e para um museu como o MASP, que é uma das maiores instituições do País?”, questiona. Letícia sugere a definição de um teto diferenciado de captação para cada categoria, de acordo com o propósito e público a serem atingidos.

Fundador e presidente da Infinito Cultural, agência com maior foco em literatura, Fauze Jibran Hsieh atesta o desafio de garantir uma concorrência mais justa na captação. “Dentro da Lei Rouanet, os projetos literários são o patinho feio. De cada
R$ 100 investidos, só R$ 1 vão para essa área.” Mesmo nesse contexto, a companhia já emplacou bons projetos com a lei. Um deles foi o Caminhos da Leitura, ação que levava uma programação cultural gratuita, ligada a temas literários, e uma feira de livros a preços populares, a municípios que não contavam com bibliotecas ou livrarias. Realizada em 2012 e 2013, a iniciativa captou R$ 4 milhões junto a empresas como a Faber Castell. E percorreu 30 cidades, alcançando mais de 6 milhões de pessoas.

FORA DO EIXO A centralização dos projetos no eixo Rio-São Paulo é outro ponto no radar de Pires. Tentativas recentes, como tetos mais atrativos de captação para os produtores que desenvolvessem projetos no Norte, Nordeste e Centro-Oeste ainda não surtiram efeito. “Uma saída seria pensar em algo semelhante para os patrocinadores”, diz Letícia. Há um consenso de que a melhor alternativa seria o Fundo Nacional da Cultura (FNC), outro mecanismo incluído na Lei Rouanet, e que compreende recursos estatais. Entre eles, cerca de 3% do valor arrecadado nas loterias federais. “O FNC foi criado com essa finalidade de descentralizar a cultura. Só que a verba nunca chega na ponta, em virtude de contingências no orçamento da União”, explica Cesnik. Em dezembro, o governo Temer sancionou uma lei que rege essa questão. “O desafio é colocar isso em prática.”

Itinerante: com R$ 4 milhões captados pela Lei Rouanet, o projeto Caminhos da Leitura levou eventos e uma feira literária a 30 cidades brasileiras que não contam com bibliotecas ou livrarias

Com R$ 54 milhões em iniciativas via Lei Rouanet, a Natura afirmou, em nota, que, a princípio, não vê nenhum impacto com as medidas em análise, já que suas iniciativas “têm dimensões financeiras bem menores do que o limite proposto” por Pires. O destaque é o Natura Musical, que já financiou desde a produção de CDs de nomes como Jards Macalé até pesquisas e documentários, como “Dominguinhos +”. Hoje, a lei responde por 15% da verba anual do projeto. Há também patrocinadores que não fazem mais uso do mecanismo e seguem ativos no fomento. É o caso do Itaú Cultural, que deixou de recorrer a esse expediente em 2016, quando a sua verba via Rouanet foi de R$ 14,2 milhões.

Exemplos como esse são vistos, porém, como pontuais. Há um consenso de que medidas extremas, como a extinção da Lei Rouanet, seriam catastróficas. A Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), uma das melhores do País, recebeu R$ 120,9 milhões desde 2010. Sem esse recurso, não sobreviveria, assim como a maior parte da produção cultural, sobretudo de vanguarda. “O que me preocupa é a caça às bruxas movida pela opinião pública”, afirma Hsieh. para ele, o setor deve fazer um mea culpa. “Como a maioria da classe é muito vinculada à esquerda, a tendência é rechaçar tudo que venha do outro lado. É a hora das duas partes baixarem a guarda e trabalharem juntas.”