O médico mineiro, que desde a década de 1980 se dedica à gestão de cooperativas do setor, é um crítico severo das decisões que favorecem poucos pacientes sem prever de onde sairá o recurso. Ele afirma que o atual modelo de cobertura pode inviabilizar tanto o sistema público quanto o suplementar – mas aponta alternativas para reduzir custos e garantir o atendimento

Há 30 anos, quando as cooperativas de saúde criadas a partir da década de 1970 corriam o risco de se tornar inviáveis financeiramente devido ao entendimento dado ao setor pela Constituição de 1988, a Seguros Unimed surgiu como uma solução para garantir sustentabilidade ao sistema de saúde suplementar. De lá para cá, novas exigências precisaram ser enfrentadas —
e a empresa tem se adaptado com uma gestão que fez por merecer o prêmio As Melhores da Dinheiro 2019 em seu segmento. Nesta entrevista, o presidente da companhia propõe modelos que permitam aos planos de saúde existir frente a custos sempre crescentes.

DINHEIRO ­— A Unimed foi pioneira na saúde suplementar. Em que contexto ela surgiu?
HELTON FREITAS – A Unimed

é um sistema de cooperativas médicas que nasceu em Santos (SP), em 1967, quando empresas de vários setores começavam a buscar na medicina de grupo uma alternativa ao INPS (Instituto Nacional de Previdência Social, criado em 1966). A Associação Médica Brasileira identificou naquela cooperativa um modelo que poderia ser replicado no Brasil inteiro, em cooperativas regionais. Elas começaram no interior de São Paulo, depois em capitais. Em 1971, foram criadas 37 Unimeds em todo o País.

Como a legislação absorveu esse movimento?

O primeiro marco importante veio em 1988, com a Constituição Federal e a criação do SUS. Naquele momento, havia uma dúvida se a saúde suplementar continuaria a existir, porque o tratamento que a Constituição dá à saúde privada não tem relação com o plano de saúde como o conhecemos, e relaciona o hospital privado e os médicos como prestadores de serviços para a saúde pública.

“O mundo todo já abandonou o modelo de cobrança por serviço, que ainda persiste no Brasil. É uma máquina de aumentar
os custos na área da saúde” (Crédito:shutterstock)

Como isso afetava os planos de saúde?

Se você ler o artigo 199 da Constituição, verá isso com muita clareza. A ideia era ter o sistema público de saúde, como na Inglaterra ou na França, e a figura das seguradoras, que fariam alguma complementação ao sistema de saúde pública.
O sistema Unimed já era grande, mas se não tivesse criado a seguradora naquela época, poderia ter saído do mercado.

A Constituição quase inviabilizou os planos?

Até 1992, de certa forma, ela foi benéfica. Havia uma modalidade, que se você precisasse se internar pelo SUS, pagaria só o médico e a instalação – a chamada complementação. Os médicos adoravam e os hospitais também. Naquela época, por falta de estrutura, o Alceni Guerra (Ministro da Saúde do governo Collor) proibiu a complementação. Ou seja, se internou pelo SUS, é SUS. Se internou particular, é particular. Em 1998, finalmente, o governo reconheceu que a saúde suplementar veio para ficar. A Lei 9656 alterou a Constituição e criou regras que não existiam. Cada um fazia um contrato como bem entendesse.
A partir de então, surgiram referências. Poderia haver um plano ambulatorial ou só hospitalar. Montou-se a cobertura mínima, vinculada ao rol de procedimentos — maior do que todos os planos que existiam até então. A lei moralizou o mercado, porque realmente algumas coisas eram ruins. Gente que não era qualificada saiu do mercado e a partir daí passou a haver uma concentração importante. Saímos de duas mil empresas para 700.

Como está essa concentração hoje?

Agora há um novo fenômeno: a concentração por força de capital. Ou seja, as operadoras estão sendo compradas por valores absurdamente elevados. É um novo momento, uma nova circunstância na saúde suplementar.

A lei que moralizou o setor também acarretou a atual judicialização da saúde?

A judicialização, na forma como acontece no Brasil, é uma jabuticaba. Pensa comigo: ou a decisão judicial será precipitada ou o processo vai correr e, no final, depois de 10 anos, o envolvido já morreu ou se curou. Aquilo se resolveu de outra forma. A Justiça é o pior lugar para se discutir saúde.

E como resolver esses conflitos?

O Brasil tem um problema: dois sistemas distintos de saúde, a pública e a suplementar. O modelo público, do SUS, foi criado a partir do paradigma beveridgiano. William Beveridge foi um ministro da economia da Inglaterra, muito ligado ao Churchill, que teve grande importância no pós-guerra. O que ele fez? Tornou o acesso à saúde um direito de cidadania — mas isso bate no orçamento.

O governo sabe que se pegar dinheiro para tratar um paciente, terá de tratar todos os outros — e isso gera um problema de caixa. Se você for à Justiça solicitar um remédio ou tratamento especial, ela pode conceder esse benefício. Outra pessoa que acionar a Justiça com o mesmo problema pode não obter uma decisão favorável.

A Justiça acaba sendo injusta…

Hoje toda secretaria de Saúde tem um departamento chamado “judicialização”, para provisionar recursos. Tudo isso gera custo. E essa conta terá de ser paga. Está faltando dinheiro para vacinar e o governo ainda tem de separar verba para decisões da Justiça? Há coisas absurdas, juízes que exigem o fornecimento de remédios que não estão homologados pela Anvisa, tratamento em spa, até iogurte… Boa parte da judicialização não é de pacientes típicos. São pacientes que até poderiam pagar. Isso deprecia muito o sistema, porque o dinheiro é um só. Se eu tiro de um lugar, alguém fica sem. O cobertor é curto.

O que justifica essas exigências?

Temos órgãos “fake” de defesa do consumidor, alguns deles da própria indústria farmacêutica. Você pode ver que toda associação de pacientes exige um remédio que trata daquela doença, e ele é caro. Normalmente quem fabrica aquele remédio financia a associação. E temos os Idecs (Instituto de Defesa do Consumidor), que precisam mostrar serviço. Eles acabam onerando mais o consumidor, porque é sempre o cliente que paga. Entra uma associação dessas que pede um medicamento de US$ 2 milhões. Mas, ao invés de a sociedade se organizar para pedir que o preço do medicamento baixe, a cobrança
é para que ele seja incluído no sistema de saúde. Há uma indústria por trás disso, e muito bem organizada. Os sistemas públicos e privados precisam se articular melhor. Há benefícios concentrados
e malefícios diluídos: você busca beneficiar um grupo, mas o prejuízo é para todos.

Os planos são sempre reajustados acima da inflação. Muitos saem do sistema e o custo aumenta para quem fica. Como reverter tal quadro?

Mais de 3,5 milhões de pessoas deixaram os planos desde 2014. Um reajuste de 12% frente uma inflação de 3% inviabiliza a permanência. E quem sai, geralmente, são os mais saudáveis. Com isso, os custos aumentam. Além disso, a lei colocou tanta regulamentação no contrato individual que ele deixou de ser interessante.

Para as empresas ou para os beneficiários?

Para ambos. Vou dar um exemplo: quem tem mais de 60 anos e um plano contratado em 1999, está pagando R$ 1,5 mil por mês. Se fosse contratar hoje, pagaria R$ 3 mil. Provavelmente quem comprou em 1999 está pagando menos do que deveria, e quem comprar agora pagará mais. Há um “subsídio” que não é correto. Então, o mercado cria alternativas, como o plano coletivo por adesão.

O modelo pelo qual os planos remuneram os hospitais é por serviço prestado. Isso não acaba gerando desvios e desperdícios?

O mundo todo já abandonou esse modelo, o “fee for service”, que ainda persiste no Brasil. É uma máquina de aumentar custos. Há médicos que pedem exame de ressonâcia magnética e outros ainda mais caros sem necessidade. Além diso, as pessoas que mais usam o plano já formam a maior parte da pirâmide. Há exceções, claro: jovens com câncer, acidentados… Mas eles são bem menos do que a frequência de pessoas com idade acima de 60 anos que não cuidaram da saúde ao longo da vida e têm muita coisa para fazer.

Que modelo deveria ser adotado?

Temos uma discussão sobre o que é valor em saúde, e isso tem muito a ver com a atenção primária. É um caminho que funciona há um século. Desde 1948, o sistema inglês entrega muito mais resultado do que o norte-americano, onde há indicadores mostrando que a população, a cada ano, vive um mês a menos. Isso prova que gastar muito e fazer muito exame não garante mais vida. É preciso direcionar
o valor em saúde para uma equação que considere a percepção do cliente, mas leve em conta a organização do cuidado.

“Ao invés de a sociedade se organizar para pedir que o preço do medicamento baixe, a cobrança é para que ele seja incluído no sistema de saúde. Há uma indústria por trás disso” (Crédito:Tânia Rêgo/Agência Brasil)

De que forma?

Vou dar um exemplo. Você vai ao médico, descobre que é diabético. Se o médico faz o diagnóstico e você nunca mais volta ao consultório, o que acontece? Nada. Ninguém te procura. No modelo ideal, o plano tem de se responsabilizar pelo seu cuidado. Ir atrás, propor um tratamento para que você o veja como um aliado, para não ter problemas maiores daqui a 20 anos.

Novas tecnologias, como a telemedicina, podem ajudar a reduzir custos?

A classe médica está lidando muito mal com muitas das soluções tecnológicas que se apresentam na campo da saúde. Eu acho que são ferramentas fundamentais para elevar a produtividade do trabalho médico. Se eu tenho um clínico atendendo a mil pessoas e consigo colocar ferramentas que façam com que ele atenda, com qualidade, 1,5 mil, eu aumentei a produtividade e o médico pode ganhar mais.

Como as redes de clínicas populares conseguem cobrar preços menores por consultas e exames?

Nessa operação, há muito menos desperdício do que na nossa. Ela resolve parte do problema, mas temos de pensar o seguinte: 1% da população atendida pela saúde suplementar é internada por mês. Então, se eu resolver bem o pacote ambulatorial, estarei atendendo a 99% da demanda. O problema é o 1% que precisa estar resguardado. Porque quando a pessoa encontra um problema mais sério, não há para onde correr.

Que alternativas poderiam ser oferecidas?

Essa é a lógica da franquia do seguro de saúde. Se você tem um plano de R$ 1 mil por mês, gasta R$ 12 mil no ano. Se eu oferecer um de R$ 500, com uma franquia de R$ 3 mil no ano, você pagará entre R$ 6 mil (se não usar a franquia) e R$ 9 mil.
É um mecanismo eficaz, mas que a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) nem discute. A coparticipação é outro exemplo. O usuário confere, audita e isso ajuda o sistema como um todo.