A maior comemoração artística do ano de 2020 já tem nome: os 500 anos de morte do mestre renascentista Raffaello Sanzio, conhecido no Brasil simplesmente como Rafael. De morte precoce, o mais novo dos três principais gênios artísticos do Alto Renascimento ganhou fama por conseguir combinar inovações de estilo e técnicas de pintura desenvolvidas por Leonardo da Vinci e Michelangelo. Assim como aconteceu com Leonardo, que teve o seu quinto centenário de morte lembrado no ano passado, haverá importantes exposições sobre Rafael em diversas cidades ocidentais. Como foi em Roma que o artista pintou as suas mais conhecidas obras-primas da maturidade, a cidade eterna será o epicentro das celebrações. Uma grande exposição sobre o pintor e arquiteto já está sendo anunciada por toda a cidade e ocorrerá no Palazzo del Quirinale, residência do presidente da Itália. Essa escolha por um lugar que representa o poder político atual do país servirá como lembrança do abismo que separa passado e presente: do auge da atividade artística e importância econômica aos dias bem mais cinzentos para os italianos. Depois de uma forte crise financeira no rastro do colapso global de 2008, a Itália nunca obteve uma recuperação forte. Em mais de uma década, o crescimento anual do PIB não superou 1,7%. As retomadas espetaculares de Portugal, Espanha e Irlanda — três dos países mais afetados pela crise na Europa — passou longe da terra dos grandes renascentistas.

A relação entre arte e negócios, com a existência de poderosos patronos, foi muito importante para a explosão de criatividade ocorrida nos séculos 15 e 16. Uma das maiores obras-primas de Rafael, o afresco O Triunfo da Galateia, foi pintado na Villa Farnesina, uma casa de campo do banqueiro sienense Agostino Chigi, erigida um pouco ao sul do Vaticano. Era neste lugar que o homem de negócios fazia as suas famosas festas, que terminavam tradicionalmente com os convidados arremessando os seus pratos no Rio Tibre. A sua casa ficava do outro lado da margem, no Plazzo Chigi, que hoje é a residência do primeiro-ministro italiano, o advogado Giuseppe Conte. Ele deve invejar o poder que o antigo morador detinha. Chigi e outros mecenas da época estavam acostumados com tumultos políticos, mas estranhariam a estagnação da Itália atual — um dos 15 maiores parceiros econômicos do Brasil e para o qual exportamos mais de US$ 3,1 bilhões ao ano.

O governo italiano estimou avanço de 0,6% no PIB de 2020. Mmesmo essa modesta projeção é considerada otimista demais. O diagnóstico para a estagnação lembra a situação brasileira recente. O déficit italiano atingiu alarmantes 138% do PIB, afastando investimentos. E a confusão política completou a receita para o fracasso. No fim de 2019, um certo alívio para o ambiente de negócios veio com a perspectiva de um governo menos populista e afeito a aventuras. Matteo Salvini, membro mais conhecido da extrema-direita italiana, retirou, em setembro, o partido radical Liga de uma coalizão com o Movimento Cinco Estrelas (M5E) — partido anti-establishment que ascendeu vigorosamente na última década. Ele queria forçar novas eleições para poder ampliar a a liderança da Liga no Parlamento e poder governar sozinho. Fracassou. Conte conseguiu montar uma aliança do M5E com o tradicional Partido Democrático (PD), formando uma frente de centro-esquerda e remontando um governo com caráter mais moderado. Dessa forma, se tornou a primeira pessoa da República a comandar um governo de direita e de esquerda numa mesma legislatura. Com a Liga fora do comando, diminuem os riscos de o país buscar um Italixit ou de passar a maior parte do tempo entrando em confronto com a União Europeia numa histeria anti-globalista, em vez de se preocupar com a soluçnao de seus problemas internos.

“Temos um programa de 23 pontos, e janeiro será a ocasião para debater e relançar a ação governamental” Giuseppe Conte, Primeiro-ministro Italiano. (Crédito:Adem Altan)

Essa tranquilidade pode durar pouco, e a frente que promete trazer estabilidade política arrisca ter vida curta. O principal nome do PD, o ex-premiê Matteo Renzi, já formou um novo partido e pode retirar congressistas suficientes para derrubar o governo, se assim desejar. O medo da volta de Salvini ao poder, por ora, o impede de uma medida mais drástica. Mas uma reportagem recente da Bloomberg analisou seis cenários possíveis para a queda de Conte. Com tanto caos político, sobra pouco tempo para o governo se dedicar a ações que poderiam tirar o país da letargia. Conte tem boas intenções — e um desejo de permanência até o fim do seu mandato em 2022. “Passado o sprint dos primeiros dias, começa uma maratona de três anos”, ele afirmou no fim de dezembro, no tradicional encontro com jornalistas. “Temos agora 23 pontos ambiciosos, e janeiro será a ocasião de parar para refletir, debater com as diferentes forças políticas e relançar a ação governamental.”

REFORMA FISCAL Além do déficit gigantesco e da instabilidade política, sobram problemas que também são bastante conhecidos por nós, como uma Justiça lenta que traz pouca confiabilidade ao ambiente de negócios, burocracia em excesso e muita evasão fiscal. Todos esses pontos fazem parte do programa de 23 itens de Conte. O país é o recordista da União Europeia em evasão fiscal, na casa dos € 190 milhões anuais, o que onera os contribuintes. O governo ainda pretende reduzir os graus de jurisdição para evitar que os processos expirem antes de serem prescritos, uma medida que desagrada a Renzi. Outras promessas envolvem a “redução da máquina burocrática”, a digitalização da administração pública e uma reforma fiscal.

Como se não bastassem tantas dificuldades, o sistema financeiro é bastante pulverizado. Qualquer crise pode criar uma perda de confiança de que as dívidas conseguirão ser pagas e pode jogar a Itália de volta a uma recessão. Diminuir o déficit também parece cada vez mais difícil à medida que o PIB cresce pouco e a inflação é alta para os padrões europeus. Ou seja, se um talento espetacular como Rafael mudasse hoje para Roma, teria poucas chances de encontrar um ambiente fervilhante de projetos, desenvolvimento e criatividade para produzir as suas obras.