A tentativa do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) de alterar o guia alimentar feito pelo Ministério da Saúde para reduzir as críticas aos alimentos ultraprocessados beneficia somente a indústria de alimentos. Essa é a visão de Carlos Augusto Monteiro, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e responsável técnico pela elaboração do documento, feito pelo Ministério da Saúde em parceria com o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP, grupo coordenado por Monteiro.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista do especialista ao Estadão.

Como foi a elaboração do guia?

Foram anos de trabalho. Fizemos várias reuniões. Em duas delas, em São Paulo, a gente trouxe de 30 a 40 especialistas de várias instituições do País. Foi o trabalho mais coletivo que já fiz na minha vida. Depois entregamos uma versão para consulta pública, que teve muitas sugestões. Muitas coisas foram incorporadas, ajustadas. Foi um processo com grande participação.

Por que a escolha pela classificação de alimentos por nível de processamento?

Criamos essa classificação em 2009 para fins de estudos. Depois, vimos que podíamos usar essa mesma estrutura para orientar as pessoas. Isso se mostrou interessante porque as pessoas entendem muito mais rapidamente essa divisão do que falar para evitar alguns componentes, como gordura saturada. Essa originalidade foi reproduzida por guias de outros países, como Peru, Equador e Uruguai. Países como Canadá e França adotaram esses princípios também. Mas há um setor que não gosta disso, pois lucra com os alimentos ultraprocessados. Doenças crônicas como obesidade e diabete vêm aumentando muito e a alimentação tem um papel importante nisso. A indústria começou a processar os alimentos para aumentar a duração deles e diversificar a nossa alimentação. A partir de certo momento, ela percebeu que poderia ganhar muito dinheiro com alimentos de baixo custo, que aproveitam componentes de outros alimentos e têm sabor que as pessoas gostam e viciam. A comprovação de que esses alimentos estão associados a maior risco dessas doenças foi mostrada não só em estudos nacionais, mas por pesquisas de países europeus, da Austrália, entre outros.

Como avaliou o documento do Ministério da Agricultura propondo a revisão do guia?

A argumentação é paupérrima, escandalosamente mal feita. Não sei como a indústria conseguiu se aproximar da ministra Tereza Cristina para esse tema porque nem é atribuição desse ministério elaborar o guia. A indústria de alimentos tenta boicotar o guia desde 2014. Um dia antes de ele ser lançado, a Abia (Associação Brasileira de Indústria de Alimentos) teve uma audiência com o então ministro, Arthur Chioro, pedindo a suspensão do guia. Foi cancelada a cerimônia de lançamento, mas o próprio ministro avaliou o documento, percebeu que era superimportante e fez o lançamento posteriormente.

E por que acha que o Ministério da Agricultura decidiu se envolver no tema?

Eu não consigo entender essa antipatia da ministra com o guia. A única coisa de que podem não gostar é da recomendação do guia que pede moderação no consumo de carne. Mas o guia não proíbe o consumo, pelo contrário, diz que é permitido o consumo em uma a cada três refeições. Tem guias alimentares de outros países que são muito mais rígidos. Mas parece que ela comprou a briga da indústria dos ultraprocessados. Com esse documento, ela chama para si o rótulo de negacionista, porque há muitas evidências sobre os malefícios desse tipo de alimento. Ao mesmo tempo, ela cria uma animosidade dentro do governo. Como que o Ministério da Agricultura escreve um documento para o Ministério da Saúde dizendo que um instrumento de política pública dele é o pior do planeta? Isso não é uma postura de quem quer diálogo. Estão ignorando e desrespeitando o Ministério da Saúde.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.