O Brasil é um país de desigualdades. Ponto. Não há como negar o óbvio. Dos 211 milhões de brasileiros, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 57% se declaram pardos e negros, mas esse contingente está longe de ser representado no mercado de trabalho. Para se ter uma ideia dessa disparidade, menos de 5% de cargos de comando das 500 maiores empresas do Brasil são ocupados por negros. A pandemia da Covid-19 aumentou ainda mais esse abismo. Entre os desempregados, 10,4% são brancos, e 17,8%, negros, que sofrem mais justamente por não ocuparem cargos de destaque nas companhias e por estarem mais suscetíveis à informalidade. Ainda assim, ações de políticas afirmativas para combater os efeitos do racismo estrutural e programas de cotas no Brasil ainda geram desconforto em parte da sociedade, que prefere ignorar os efeitos da falta de oportunidades, em todos os aspectos, em uma espécie de escravidão velada, ainda que passados 132 anos do documento assinado pela princesa Isabel.

O mais recente episódio de ataques a políticas de inclusão, principalmente por aqueles escondidos atrás de um teclado, foi a partir de uma decisão que tem enorme potencial para quebrar paradigmas. E, por isso, gerar tanta polêmica. Considerada uma das empresas mais admiradas do País pelo Instituto Brasileiro de Executivos de Varejo e Mercado de Consumo (Ibevar), o Magazine Luiza lançou, no último dia 18, um programa de trainees voltado exclusivamente para negros. Serão de 15 a 20 vagas, para início em 2021. Poderão concorrer candidatos formados entre dezembro de 2017 e dezembro deste ano. Não há exigência de conhecimento de um segundo idioma e nem experiência profissional. O salário será de R$ 6,6 mil, além de bônus de contratação de um salário. Entre os benefícios, estão plano de saúde, participação nos lucros e resultados (PLR) e bolsa de estudo para cursar inglês. As inscrições vão até 12 de outubro e podem ser feitas pelo site da companhia.

No post que anuncia o programa, na página do Magalu no Facebook, muitos comentários criticaram a medida. Partiram contra a empresa. E contra os negros. “Se você é branco e pardo não compre no Magazine Luiza. Deixe só o povo negro comprar”, disse uma internauta. Em outra postagem, alguém indagou: “Isso não seria racismo aos brancos?”. Alguém escreveu a frase “Ser negro no Brasil ‘tá’ virando privilégio”. Outros comentários, irônicos e preconceituosos, do tipo “Não percam o lançamento do filme ‘A Negra de Neve’….” e “Será que se eu tingir minha filha de preto ela consegue uma vaga?”.

SEM ABALO Frederico Trajano, CEO do Magalu, defendeu a política afirmativa adotada pela companhia e disse que não irá recuar, “Queremos ver mais negros na liderança do Magalu”. (Crédito:Claudio Gatti )

Os ataques não foram apenas de anônimos na internet. O deputado federal e vice-líder do governo na Câmara Carlos Jordy (PSL-RJ) afirmou que entrou com representação junto ao Ministério Público para apurar suposto crime de racismo no processo seletivo do Magalu. A juíza do Trabalho Ana Luiza Fischer Teixeira de Souza Mendonça escreveu, em seu perfil no Twitter, que o programa de trainee com vagas apenas para negros, é “inadmissível”. Os dois são brancos. O presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Machado, órgão ligado à Secretaria Especial de Cultura do governo federal, se virou contra a presidente do Conselho de Administração da Magalu, Luiza Helena Trajano. Em postagem no Twitter, Machado chamou a empresária de “vitimizadora dos negros”.

As pedradas não atingiram a dona da empresa, Luiza Helena Trajano, que bancou a medida junto com o filho Frederico, atual CEO do Magalu. Ela não recuou da decisão e disse que irá até o fim. “Muitas vezes, as pessoas não conhecem profundamente o que é o racismo estrutural”, disse Luiza Trajano, em entrevista exclusiva à DINHEIRO (leia ao lado).

Gabriel Reis

“O trainee é a porta de acesso para liderança. por isso é importante esse olhar para as ações Afirmativas” Raphael Vicente, coordenador da iniciativa empresarial pela igualdade racial.

Em artigo publicado pelo Brazil Journal, Frederico Trajano também garantiu que a empresa não iria voltar atrás de sua política de inclusão. “O Magalu nasceu para incluir. Trata-se de um conceito amplo”, afirmou o executivo no texto. “Queremos ver mais negros na liderança do Magalu. A diversidade nos tornará uma companhia melhor, capaz de gerar mais retorno aos acionistas”.

A decisão da empresa está amparada, sim, pela legislação. Implementado em 2010, o Estatuto da Igualdade Racial garante, em seu artigo 4º, a participação da população negra, em condição de igualdade de oportunidade, na vida econômica, social, política e cultural do País, por meio de inclusão nas políticas públicas e programas de ação afirmativa. Em nota, o Ministério Público do Trabalho (MPT) defendeu a ação do Magalu e chamou atenção das empresas para execução do Projeto Nacional de Inclusão de Jovens Negras e Negros, instituído pelo órgão.

RECONHECIMENTO O próprio Magalu reconhece que precisava discutir esse assunto de forma mais efetiva, olhando para dentro. Dentre os 35 mil funcionários, 53% são negros, mas apenas 16% estão em cargos de liderança (coordenador, gerente e diretor). No comitê executivo e no Conselho de Administração, nenhum negro. Nos últimos 15 anos de formação do programa de trainees, a empresa realizou 250 contratações, dos quais apenas 10 negros. “Para o Magalu, que prega o valor estratégico para a diversidade do negócio, seria um absurdo ignorar o problema”, disse Patricia Pugas, diretora executiva de gestão de pessoas da empresa. Para ela, o grupo já estava preparado para a enxurrada de críticas. “Era esperado que uma ação intencional como essa desencadeasse discussões. Por intermédio da Luzia e do Frederico nas redes, nos manifestamos de forma contundente e transparente sobre a legalidade do programa”, afirmou.

O coordenador-geral da Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial, Raphael Vicente, que participou da concepção do programa de trainee da Magalu junto com outras entidades e consultorias, entende que era necessário o foco para esse problema no cenário corporativo. “Requisitos como inglês e faculdade de primeira linha afastam boa parte da população desses programas, principalmente o negro, por ter menos acesso a essas oportunidades”, disse o advogado. “O trainee é a porta de acesso para a alta liderança. Por isso é tão importante esse olhar para as ações afirmativas”.

O mercado gostou. O anúncio da política afirmativa fez com as que as ações da Magalu subissem. Na terça-feira (22), o papel teve alta de 2,67%, de R$ 87,16 para R$ 89,49. No pior cenário do ano para a empresa, em 28 de março, uma semana antes do início do isolamento socialele era negociado a R$ 28,78. Em seis meses, a ação da companhia teve valorizacão de 211%. O Ranking BrandZ 2020 colocou o Magalu como a quarta marca mais valiosa do Brasil, com US$ 5,1 bilhões de valor de mercado e crescimento de 124% em relação ao ano anterior. No segundo trimestre deste ano, ainda que impactado totalmente pela crise econômica a partir da pandemia, o Magalu registrou receita líquida de R$ 5,5 bilhões, alta de 29,3% em relação ao mesmo período de 2019. O e-commerce cresceu 182% entre abril e junho deste ano.

POLÍTICA DE MUDANÇA Dos 35 mil funcionários do Magalu, 53% são negros, mas apenas 16% ocupam cargos de chefia. E de 250 trainees contratados, só 10 eram negros. (Crédito:Divulgação)

Para a analista de ESG da XP Inc., Marcella Ungaretti, políticas de inclusão já estão nas agendas das empresas em todo o mundo. No Brasil, o tema vem avançando. “A gente tem percebido evolução das empresas em termos de governança, com destaque para questões sociais. Essas discussões ganharam relevância ainda maior após o início da pandemia, que colocou holofote nesses temas”, disse. “As companhias vencedoras são as que colocaram esse debate em primeiro plano.”

Depois do Magalu, a Bayer também anunciou processo seletivo para contratação de negros. Raphael Vicente entende que medidas afirmativas como essa são um caminho sem volta nas companhias. “O que o Magazine Luzia fez foi arrancar um band-aid do ferimento, com casca e tudo. E aí começou a gritaria”, disse. “O racismo não é um problema do negro, é um problema do País. Essa discussão precisa passar o Brasil a limpo.”

Divulgado na semana passada, o ranking 2020 da revista Forbes mostra que a presidente do Conselho de Administração do Magalu, Luiza Trajano, está no topo da lista entre as mulheres mais ricas do Brasil. No ranking geral, a empresária ocupa a 8ª posição, com patrimônio de R$ 24 bilhões. No ano passado, ela ocupava o 24º lugar. No período, o crescimento da fortuna de Luiza foi de 181%. Cada vez mais, a dona do Magalu vem mostrando, na prática, que sua fortuna é fruto também da visão de um futuro melhor para o País.

ENTREVISTA: Luiza Helena Trajano
“Sabíamos que qualquer quebra de paradigma causaria reação”

Luisa Santosa

Como a senhora recebeu as críticas à decisão do Magazine Luiza de implementar um programa de trainee exclusivo para negros e a possibilidade de a medida ser judicializada?
A equipe que estruturou o programa fez um grande trabalho, consultando grupos, entidades e especialistas. Já sabíamos que qualquer quebra de paradigma causaria reação. Ela veio um pouco maior do que esperávamos, mas também tivemos muito apoio e estamos aprendendo e ouvindo todos para aperfeiçoar futuros projetos. Este foi um recurso que usamos na nossa empresa para estimular a diversidade, que faz parte da nossa cultura.

A senhora acredita que o Magazine Luiza está contribuindo de forma definitiva para quebrar um paradigma no meio empresarial brasileiro?
Várias empresas já fizeram programas semelhantes de acordo com a sua realidade. A Bayer, por exemplo, também anunciou um programa só para negros. Acredito que ações para diminuir desigualdades sejam cada vez mais constantes nas empresas, especialmente na pós-pandemia.

Por que há tanta indignação para políticas afirmativas e de inclusão como essa?
Muitas vezes, as pessoas não conhecem profundamente o que é o racismo estrutural, enraizado. É preciso refletir sobre a dívida social gigantesca do Brasil, que viveu uma escravidão de mais de 300 anos e com o final mais cruel possível. Acredito que essas discussões façam todos a refletir e perceber a importância das inclusões e das reparações.