Em especial nos países que atingiram elevado desenvolvimento humano e econômico, a produção e o consumo culturais são entendidos como política de Estado — e não como política de governo. É assim que se equilibram e resistem a alternâncias de poder. As artes, como sabemos, são potentes espaços de existência de identidades e de manifestação dos desejos da sociedade. É na cultura que verificamos a possibilidade de diálogos entre realidades contextuais distintas. Aferimos na cultura, portanto, as condições para o desenvolvimento humano e econômico.

No Brasil, a institucionalização da cultura é recente. Ela se deu apenas em 2005, por meio da Emenda Constitucional 48, que previu a criação do Plano Nacional de Cultura (PNC). Ainda assim, o pouco interesse político na promoção e manutenção dos direitos culturais dos brasileiros fez com que apenas em 2010 o governo federal viesse a instituir o PNC, com a promulgação da lei 12.343. A legislação entende o Plano Nacional de Cultura como um conjunto de princípios, objetivos, diretrizes, estratégias e metas que devem orientar o poder público na formulação de políticas culturais. Como a lei prevê um prazo de vigência de dez anos, a revisão do PNC deverá ser feita, obrigatoriamente, em 2020. Antes de revisá-lo, é fundamental entender seu impacto social e econômico, assim como as demandas que ainda não foram — e precisam ser — contempladas.

A ideia de soft power (o poder de influenciar atitudes sem o uso de coerção), defendida por Joseph Nye, cientista político com PhD pela Universidade de Harvard, nos alerta para a importância da cultura como insumo para o diálogo. O reconhecimento das artes como veículo para a concretização de outros objetivos (entre eles, ganhos econômicos), estabelece — ou deveria estabelecer — um novo patamar de discussão sobre o papel do Estado na criação de políticas culturais. No entanto, se levarmos em consideração que a contemporaneidade cristalizou o patrimonialismo na esfera pública do País, compreenderemos que a diferença entre público e privado não é clara aos olhos do brasileiro.

O interesse particular levantou-se em oposição ao público. Quando há tal minoração do entendimento da ideia de público, não há mais a condição de convivência, de interlocução e, portanto, a violência (supremacia de um indivíduo sobre o outro) assenta-se como alternativa à ausência do compartilhado. A política deixa de ser a gerência do bem comum para se tornar a administração das necessidades dos indivíduos que, para terem garantidos seus direitos culturais, precisam agir de acordo com as regras do mercado.

A privatização dos interesses culturais é resultado da dependência que os atores dessa cadeia produtiva têm do capital financeiro e, ironicamente, dos modos de consumo consubstanciados em uma cultura que não é nossa: ela foi importada dos Estados Unidos. É nesse espaço privatizado e limitado que vemos surgir uma resposta para o acesso aos meios de produção e de consumo cultural. A construção de dispositivos com a função de abrir brechas para a criação do novo em microespaços sociais — visto que os macroespaços já são dominados hegemonicamente — é fundamental.

Ao conferirmos o início da reconquista (se assim podemos dizer) recente do espaço da cultura, apresentado inicialmente pelas “primaveras” e pelos movimentos occupy, seguidos de manifestos de diversas naturezas, percebemos — ou podemos inferir — que se vem constituindo uma nova maneira de fazer cultura. E um porvir muito mais esperançoso.

(*) Gisele Jordão é professora, coordenadora do curso de
cinema e audiovisual da ESPM-SP e pesquisadora responsável
pelo Panorama Setorial da Cultura Brasileira