Ao abrir a champanhe para comemorar a virada de ano, o economista fluminense Pedro Sampaio Malan, de 58 anos, estará, ao mesmo tempo, deixando seu posto como o mais duradouro ministro da Fazenda na história moderna do Brasil ? um feito histórico, sobretudo porque esses oito anos foram um período de profundas, violentas e muitas vezes polêmicas transformações da economia brasileira. Seja por sua reconhecida habilidade política, seja pela intensa relação de confiança que estabeleceu com o presidente, Malan passou ileso por todas as mudanças ? inclusive a desvalorização do real, em janeiro de 1999, à qual o ministro, espantosamente, sobreviveu, embora tenha sido o fiador da política de câmbio fixo. ?Ele é um excelente político. Se fosse apenas bom economista não teria resistido?, constata Eduardo Freitas, economista-chefe do Unibanco. Além de manter-se no cargo, o que não foi pouco, Malan também conseguiu fazer com que algumas de suas principais idéias fossem assimiladas pelo País. Nesse sentido a penetração do chamado malanismo foi tão completa que dela não escapou sequer a equipe do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva. Basta ouvir o ministro indicado da Fazenda, Antônio Palocci, para perceber que a prioridade no combate à inflação e o controle obsessivo dos gastos públicos continuarão na agenda mesmo depois que Malan tiver partido.

Não se sabe ainda para onde ele irá, mas seu filho foi matriculado em um colégio do Rio de Janeiro para o ano letivo de 2003. Isso sugere pelo menos um semestre lecionando na PUC. Depois…

Tendo registrado, porém, a longevidade do ministro e a vitória de suas idéias, há que se voltar para o outro lado da moeda ? e ele não é bem como o ministro gostaria. A média das projeções de mercado apurada pelo Banco Central diz que a inflação em 2003 será de 10,83% e que neste ano ela ficará em 11,63%. Ainda que a inflação não cresça e seja mantida nesse mesmo patamar ? o que é bastante provável ? , o fato é que Malan está entregando a Palocci um País com inflação de dois dígitos. Sua gestão termina como um semi-fiasco pelo parâmetro que ele mesmo elegeu como o mais importante, apesar dos enormes sacrifícios que foram impostos ao País em nome da estabilidade da moeda. A situação é tanto pior porque outros países de economia semelhante, como México e Chile, que o ex-ministro Delfim Netto chama de ?testemunhas?, conseguiram manter taxas de inflação menores que a brasileira, com melhores índices de crescimento. Isso não quer dizer que os gestores econômicos e Lula estão isentos de responsabilidade pelo comportamento dos preços. ?Se tivermos uma inflação maior que a atual no ano que vem, ela será obra e graça do próximo governo?, diz Heron do Carmo, da Fipe.

Na questão dos gastos públicos, o currículo de Malan também está maculado. Entre 1994 e 1999, por exemplo, o País gastou como sempre gastara, a despeito do discurso austero do seu ministro da Fazenda. Não houve nesse período um tostão de superávit primário nas contas públicas. Foi só em 1999, quando o FMI assumiu a gestão macroeconômica do País, que se começaram a produzir superávits acima de 3% do PIB ? cuja continuidade, tipicamente, Malan passou a exigir da futura administração do PT como se fosse a coisa mais natural do mundo. E há outro problema grave. Por conta dos juros recordes cobrados ao longo da primeira gestão FHC (22% reais), e , mais recentemente, devido à elevação do dólar em relação ao real, a dívida pública brasileira cresceu dez vezes, apesar da mais feroz arrecadação de impostos da história do País. Esse constitui, talvez, o legado mais pesado do atual ministro e tem de ser atribuído a ele e sua equipe. Foram os juros astronômicos usados para defender a sobrevalorização do real que causaram a explosão da dívida pública e a maciça transferência de renda dos setores produtivos para os bancos. Um dos efeitos colaterais mais notórios da política de real valorizado foi a raquitização das exportações brasileiras e o esfarinhamento da indústria local ? tratados como inevitáveis pela equipe econômica na primeira gestão de FHC. O fato de o governo chegar ao fim com o presidente brandindo um ?exportar ou morrer? é mais uma evidência de apesar do discurso racional o Brasil de Malan andou em círculos.

Um síntese numérica feita com má vontade em relação a Malan diria que o Brasil nunca pagou tanto imposto (33% do PIB), nunca arcou com juros tão altos e nunca fez um superávit primário tão severo ? e apesar disso a dívida pública não parou de crescer, sufocando a economia e minando a sua capacidade de crescimento. ?O atual governo está deixando uma herança salgada, que deixa seus sucessores com um grau de manobra baixíssimo?, diz Luciano Coutinho, economista da Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp. Nos próximos quatro anos, quando o governo Lula tiver de enfrentar a herança do período Malan ? entra elas o desemprego recorde de 8% e a vocação de crescimento anêmico de 2% ao ano ? a gestão do ministro de FHC será melhor avaliada. Afinal, em parte alguma do mundo civilizado economistas saem do governo sob aplauso deixando inflação de dois dígitos, impostos na casa de 33% do PIB e dívida pública de 63% do Produto. Quando isso acontece as pessoas se referem à gestão que terminou como um fracasso, ou pelo menos um grande desapontamento. Até agora Malan, que tem sabido sair e entrar em cena nos momentos mais convenientes, conseguiu evitar essa avaliação. Ele mesmo sumiu, dando a impressão de que a economia já é conduzida por Palocci. Mas os números, cedo ou tarde, acabam aparecendo.