Cadáveres nus alinhados na lama de um cemitério de Timisoara: a cidade onde começou, em dezembro de 1989, a revolução romena permanece associada à farsa da “falsa cova coletiva”, um arquétipo da excitação midiática, trinta anos antes da era das ‘fake news’.

Na véspera de Natal, quando o ditador Nicolae Ceausescu é preso após uma semana de manifestações, o público ocidental descobre com horror corpos cobertos de mutilações atribuídas às atrocidades da Securitate (polícia política romena).

As imagens circularam nos canais de televisão e nas primeiras páginas da imprensa estrangeira, cujos enviados especiais chegaram às dúzias no país até então fechado ao mundo pelo regime.

Foi no cemitério de indigentes de Timisoara que eles descobriram esses corpos alinhados no chão, apresentados como prova da sangrenta repressão do levante.

A revolução romena deixou mil mortos no país, incluindo cem em Timisoara.

Mas, no final de 1989, 4.630 vítimas apenas na cidade de Timisoara foram citadas pela imprensa estrangeira, que também mencionou a existência de várias valas comuns.

Foi necessário esperar o mês de janeiro para que o balanço fosse avaliado e a mentira do cemitério fosse revelada: os cadáveres eram de pessoas mortas antes dos eventos e depois desenterradas.

– Enxurrada de imagens –

Foi uma encenação destinada a abalar o regime de Ceausescu ou exumações realizadas pelos romenos em busca de desaparecidos?

Procurador em Timisoara em dezembro de 1989, Romeo Balan acredita no segundo cenário.

Em 22 de dezembro, magistrados romenos e médicos legistas examinaram os cadáveres do cemitério e constataram que as mortes aconteceram muito antes do levante, explicou Balan à AFP.

“Mas nada adiantou, as pessoas continuaram cavando em outros lugares”, lembra ele.

“Eles não sabiam onde estavam seus mortos, procuraram por toda parte, em lugares onde poderia haver valas comuns”, disse à AFP Ioan Banciu, morador de Timisoara.

Sua esposa Leontina foi morta a tiros durante uma manifestação em Timisoara em 17 de dezembro. Ela morreu nos braços dele a caminho do hospital. Quando ele voltou, o corpo havia desaparecido.

O treinador de futebol descobriu duas semanas depois que cerca de quarenta mortos, incluindo sua esposa, haviam sido removidos do necrotério e cremados em Bucareste. O regime esperava, assim, apagar os rastros do massacre. Uma história verdadeira.

Num ambiente de confusão e psicose, os repórteres “embarcaram nos boatos que circulavam”, observa o jornalista Michel Castex, que cobriu a revolução romena para a AFP, em Bucareste.

Em 24 de dezembro de 1989, uma das notas da AFP escritas em Timisoara descrevia os cadáveres do cemitério.

Os interlocutores romenos atribuíam essas mortes a “fanáticos da Securitate”, falando de “mutilações sem sentido”.

“A revolução romena também era um imaginário coletivo, um cenário, estávamos esperando por essas imagens, pois Ceausescu era um ditador sanguinário”, analisa o historiador e especialista em mídia Christian Delporte.

“Quando você quer acreditar em alguma coisa, encontra todas as razões para acreditar nela e a natureza onipresente dessa família Ceausescu aumentou a ideia de que tudo era possível”, observa Michel Castex.

Procurar furos, o espetacular, a pressão da concorrência: todos os ingredientes estavam lá para levar ao que a associação Repórteres Sem Fronteiras chamou de “um dos maiores enganos da história da mídia moderna”, que provocou danos à credibilidade da mídia.

“Foi a primeira vez que tivemos imagens ao vivo de uma revolução no leste europeu e a imagem era considerada como prova”, apesar da falta de contexto, observa Christian Delporte.

“Hoje, continua o analista, somos muito mais cautelosos com a torneira de imagens.

Na era das redes sociais, podemos imaginar que logo haveria “fact-checking”.