Há várias dessemelhanças entre a B3 e a bolsa de Nova York. A B3 não tem como participantes 56% da população. Há 186 milhões de americanos investindo em ações. Por aqui, o número de 4 milhões de investidores é um recorde, mas representa menos de 2% dos brasileiros. A B3 não tem relevância internacional. Diferentemente dos índices americanos, o Ibovespa é um indicador importante apenas para quem investe no Brasil. E, a partir da noite da terça-feira (23), a B3 também não tem uma escultura de touro para celebrar a pujança do mercado, da economia e dos brasileiros em geral. Após exatamente sete conturbados dias à frente da Bolsa, a obra Touro de Ouro, do arquiteto e artista plástico Rafael Brancatelli, foi retirada do local pela Prefeitura.

A justificativa foi a decisão da Comissão de Proteção à Paisagem Urbana (CPPU), ligada à Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento. Não havia licença para a colocação, que desrespeitou a Lei da Cidade Limpa. E a CPPU considerou a obra como publicidade, pois a escultura foi patrocinada pela empresa de educação financeira Touro Inc., do influenciador e educador financeiro Pablo Spyer, associado à XP Investimentos e criador do bordão “vai, tourinho!” para estimular os investimentos em ações. Após sete dias de polêmica, o tourinho foi. Para onde, ainda não se sabe.

As comparações com a o bovino americano são inevitáveis. Criado pelo artista plástico italiano Arturo di Modica, o Charging Bul, ou Touro Atacando, representa o mercado acionário em alta. Foi instalado em 1989, após a crise de 1987, como “um símbolo da força e do poder do povo americano”. A inauguração ocorreu no dia 15 de dezembro. Lá como cá, a escultura gerou protestos e críticas. Foi retirada da frente da bolsa seis dias depois e recolocada em outro local a dois quarteirões de Wall Street. Desde então, para o bem ou para o mal, o Charging Bull tornou-se um símbolo do mercado acionário. A primeira assembleia do Occupy Wall Street, que criticava a concentração de renda, foi realizada a seu lado. E as intervenções mostram que ela se inseriu no imaginário popular.

A polêmica envolvendo a estátua colocada no centro de São Paulo — que, em outra dessemelhança com Wall Street, é de isopor e acrílico, não de bronze — é um reflexo fiel das contradições da sociedade brasileira. Não há nenhum problema em celebrar o sucesso profissional ou empresarial. Ao contrário, em um país carente de figuras inspiradoras, reconhecer quem chegou ao sucesso por meio do trabalho e da competência é quase um dever cívico. Porém, um período que conjuga inflação e desemprego em alta e economia desacelerando não é o melhor momento para louvar a afluência do mercado de capitais. Quem tem fome tem pressa. E não tem paciência para ouvir narrativas que falam de bilhões de reais trocando de mãos enquanto conta trocados para comer e pagar a conta de luz. A colocação da escultura dourada poderia ser interpretada como uma ironia fora de lugar.

Foi o que ocorreu. Poucas horas após a inauguração, já circulava pela internet um manancial de sátiras e críticas. A menos ácida editava a imagem de modo a mostrar um touro esquálido, com costelas à mostra. Várias montagens traziam o ministro da Economia, Paulo Guedes, cavalgando a escultura. Não faltaram interpretações que não tinham nenhuma relação com a Bolsa. Por exemplo, um churrasco promovido por uma ONG para protestar contra a falta de moradia em São Paulo. As reações mais violentas incluíram vandalismo. A estátua foi pichada e nela foram colados cartazes contra a fome, outro tema também alheio ao mercado de capitais. A depredação se estendeu à fachada da B3 após a retirada.

Com ou sem touro de acrílico dourado, brasileiras e brasileiros são uma turma resiliente desde antes de essa palavra ser inventada. Não é preciso uma estátua para lembrar disso. Bastam as agruras da vida diária do Brasil de Jair Bolsonaro em 2021. Mas, diferentemente do Charging Bull, o Touro de Ouro colocado e tirado da frente da B3 foi um lembrete da relação complexa entre os brasileiros e o dinheiro, próprio e alheio. Conhecedor do assunto e do País, Tom Jobim (1927-1994) dizia que fazer sucesso no Brasil é ofensa pessoal. Uma escultura louvando a fortuna em uma sociedade tão desigual e com tão poucas oportunidades de ascensão como a nossa é uma tentativa desastrada de pegar o touro pelos chifres.

Cláudio Gradilone é editor de Finanças da DINHEIRO.