O executivo financeiro Guilherme Ferreira não se esquece da tarde da sexta-feira, dia 14 de setembro de 2008. Ele foi chamado à sala do chefe, no luxuoso prédio na rua 57, em Nova York, que abrigava o banco de investimentos americano Lehman Brothers. “Guilherme”, disse o executivo, “se você tiver documentos pessoais ou as chaves do seu carro nas suas gavetas, recomendo que leve tudo para casa.” Ferreira não pediu uma explicação, mas o chefe a forneceu assim mesmo. “Além de um banco de investimentos, nós somos uma corretora de valores e, se houver uma intervenção no fim de semana, o prédio será lacrado. Vai ficar difícil tirar suas coisas.” A recomendação deixou claro que a quebra do quarto maior banco de investimentos dos Estados Unidos era questão de tempo. Não foi exatamente uma surpresa.

Há dias, o edifício no centro de Manhattan era cercado por veículos de emissoras de televisão, a postos para noticiar a quebra. Ferreira teria a confirmação no dia seguinte, em casa. “Recebi um e-mail avisando que o banco tinha pedido falência”, diz ele. “Foi o começo de um período de dois anos difíceis, pois o banco tinha de liquidar milhões de operações financeiras com milhares de contrapartes ao redor do mundo.” A débâcle do Lehman mudou definitivamente o perfil do sistema financeiro. O banco, que controlava mais de duas mil empresas, investia em tudo, de títulos públicos americanos a ativos como 233 toneladas de urânio, usado como combustível de usinas nucleares.

Quebra esperada: funcionário do Lehman desocupando o escritório

“Até a quebra, o mercado financeiro não tinha consciência da profundidade dessas interconexões”, diz o gestor de fundos Daniel Vairo, sócio da gestora independente Pacífico. Na data fatídica, Vairo geria fundos em um banco brasileiro e era responsável por investimentos internacionais. Sua recordação é de dias tensos. “O dinheiro que o fundo guardava para usar como margem de garantia para negócios no mercado futuro americano estava depositado no Lehman”, diz ele. “De um dia para o outro, nós deixamos de ter certeza se esses recursos estariam disponíveis.” Se não fosse possível sacá-los para cobrir uma chamada de margem, as operações do fundo teriam de ser encerradas, causando prejuízos relevantes aos investidores.

Felizmente para Vairo e seus clientes, o dinheiro não ficou preso. Mas isso provocou uma reflexão profunda no mercado. “Passamos a ficar muito mais conscientes de riscos que até então passavam despercebidos”, diz ele. Por exemplo, o risco de custódia (se será possível tirar os recursos do banco em que estão depositados) e o de contraparte (como fica o negócio se a outra ponta da operação quebrar sem aviso prévio). Como resultado, as autoridades financeiras ao redor do mundo passaram a ser muito mais detalhistas em suas análises de risco. Houve mudanças profundas na legislação ao redor do mundo. Nos Estados Unidos, as alterações constam de uma lei publicada em julho de 2010, denominada Ato Dodd-Frank.

Em suas 1.252 páginas, o ato estabelece o conceito de instituições que oferecem risco sistêmico (como o Lehman Brothers), torna mais aprofundado o controle sobre elas, submete os maiores bancos continuamente a testes de estresse para saber se há risco de quebra e, principalmente, torna os executivos financeiros solidários nas perdas. O impacto da Dodd Frank foi intenso e reduziu a liberdade de ação dos bancos. Agora, eles são obrigados a manter mais dinheiro em caixa para fazer frente a eventuais necessidades, o que representa emprestar menos e lucrar menos. Não por acaso, apesar da alta recente das ações americanas, cujos índices quebram sucessivos recordes, os papéis dos bancos ainda estão 8% abaixo do pico de 2007. Eles são o único setor relevante da bolsa que ainda não se recuperou da crise financeira global.

Desde que Donald Trump tomou posse, porém, o governo vem defendendo um abrandamento das regras (leia reportagem aqui). “Após a quebra do Lehman, os governos mudaram as leis e reduziram a probabilidade de uma crise, mas também reduziram a flexibilidade para enfrentar novas turbulências”, escreveu Ray Dalio, chefe de investimentos da Bridgewater, maior gestora de fundos de hedge do mundo, com US$ 150 bilhões sob administração. Por enquanto, o furor desregulamentador de Trump avançou pouco além da retórica, mas espera-se mais pressão do Executivo nos próximos meses. “A discussão vai longe”, diz Vairo.

A falência provocou choro e ranger de dentes ao redor do mundo mas, como era de se esperar, fez alguns felizardos. Um deles é Ferreira. Dez anos depois, ele é sócio da Jive Invetimentos, uma empresa especializada na aquisição de créditos de liquidação duvidosa. O patrimônio de cerca de R$ 10 bilhões em empréstimos vencidos originou-se da aquisição de uma carteira de R$ 850 milhões de créditos no Brasil que pertencia ao próprio Lehman. O valor de compra foi baixo, R$ 27 milhões,. “Os sócios fundadores da Jive haviam assessorado empresas americanas que queriam sair do Brasil e conheciam esse mercado”, diz ele “A oportunidade de comprar a carteira do Lehman deu o impulso inicial para a empresa.”


Confira as demais matérias do Especial “10 anos de crise”:

Os dez anos da crise global 2008 – 2018
O colapso das empresas
O bombeiro da crise
Trump afrouxa as engrenagens
O enredo da tragédia