11/02/2022 - 2:50
Kamikaze significa vento divino. A expressão ganhou contornos militares no Japão do século 13 quando ataques mongóis ao país foram frustrados por condições climáticas adversas para o inimigo. Mas foi só na Segunda Guerra que o termo ganhou sua conotação mais popular no Ocidente, referindo-se a de pilotos de avião japoneses que aceitavam missões suicidas para obter vitórias contra os Aliados. Transportando o conceito para o Brasil de hoje, os Poderes Executivo e Legislativo tentam buscar o vento divino que poderia acabar com a alta do preço dos combustíveis no Brasil, mas na verdade estão apenas carregando uma bomba relógio em um avião que vai colidir em breve. A explosão resultante virá na forma de alta da inflação, descontrole das contas públicas e, pior, pode não destruir o alvo desejado, que é aliviar o bolso do brasileiro, pressionado pela disparada nos preços dos derivados de petróleo.
Com grande apelo eleitoral, uma solução para baratear os combustíveis estará no centro dos discursos de todos os candidatos à Presidência da República. Para evitar que seus concorrentes explorem o tema na forma de ataques à atual gestão, o presidente Jair Bolsonaro tem confiado em quem apresente o projeto mais imediatista, populista e demagógico. Até agora, reside no Senado essa solução. Trata-se da Proposta de Emenda à Constituição dos Combustíveis. O texto apresentado pelo senador Carlos Fávaro (PSD-MT) é confuso, abriga vários jabutis e tenta conciliar, de modo quase infantil, desejos de Bolsonaro, Câmara e Senado.
Todas essas benesses caíram como luva na base governista, em especial os parlamentares de olho na eleição. Já no Bloco P na Esplanada dos Ministérios, onde fica a sala do ministro da Economia Paulo Guedes, a PEC caiu como bomba. As estimativas do próprio governo dão conta de uma perda de até R$ 150 bilhões com a proposta, entre renúncia fiscal e custeio de auxílios e projetos de mobilidade. Com esse sinal de alerta, Guedes a apelidou de “PEC Kamikaze”. A resposta do autor do texto, senador Carlos Fávaro (PSD-MT), veio na forma de fogo cruzado. Segundo ele, Kamikaze é a política econômica do atual governo.Trata-se de um Frankenstein. Em um mesmo corpo, partes de origens distintas, tentam liberar R$ 5 bilhões a estados e municípios para projetos de mobilidade urbana que beneficiem idosos; cria um “auxílio diesel” de R$ 1,2 mil para caminhoneiros; eleva de 50% para 100% o subsídio ao gás de cozinha para famílias de baixa renda; e reduz impostos federais não só sobre os combustíveis, mas também sobre a energia elétrica. O texto também determina a criação de um fundo para amortecer as oscilações externas no preço do combustível e abre caminho para o governo federal gastar até R$ 17,7 bilhões em subsídios fora das regras fiscais ainda em 2022.
O presidente Bolsonaro tem falado a aliados no Congresso que gostou bastante da proposta de Fávaro. Entre os apoiadores da PEC está o filho do presidente, senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ). Mas outro texto, escrito pela Casa Civil da Presidência da República, prevê a redução dos impostos sobre os combustíveis com impacto de R$ 54 bilhões nas contas públicas. Só que ele está estacionado na Câmara dos Deputados. E no que depender do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), de lá não sairá. Já que, segundo ele, o Senado não será um “carimbador das propostas da Câmara”. Com essa ameaça velada, assessores de Guedes confirmaram à reportagem que o ministro estuda uma contraproposta para zerar os tributos, mas só do óleo diesel, o que teria um impacto de até R$ 18 bilhões ao ano. Sem nada ter sido oficialmente colocado, o Senado segue o plano de colocar em tramitação seu próprio texto, a partir de 15 de fevereiro.
EMPRESÁRIOS Contra essa proposta Kamikaze, boa parte do empresariado se posiciona do lado da preservação do controle fiscal do País. O argumento geral é que pensar em soluções para baratear o custo do combustível é algo bem-vindo, desde que não desequilibre outras frentes macroeconômicas, como dólar e inflação, como alertado pela mais recente Ata do Copom, divulgada na terça-feira (8). Para o presidente da Associação dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Luiz Carlos Moraes, baratear o custo do combustível para o transporte público e para os caminhões é algo que surte um efeito positivo em toda a sociedade. Mesmo assim, ele se diz contra outros auxílios. “Não há recurso para tudo o que está sendo proposto. Se incluírem, os agentes econômicos vão reagir, precificar e o dólar terá alta. Não resolverá o problema e criará outro.” A percepção é semelhante à do presidente da Viação Santa Cruz, Francisco Carlos Mazon: “Não acredito que vá resolver o problema. Pode atenuá-lo no curto prazo, mas a questão é um pouco mais profunda”, afirmou à DINHEIRO o empresário que atua no transporte de passageiros no interior paulista. “Não vejo como estados e municípios podem abrir mão das receitas atuais. O ideal seria diminuir o custo da máquina pública em todos os níveis. Mas, em ano de eleição, creio que isso não será possível.”
A inclusão do auxílio aos caminhoneiros também é criticada pela Confederação Nacional do Transporte (CNT). Para o presidente Vander Costa, o montante não terá resultado efetivo na vida dos motoristas e fará com que o mercado pressione para baixar o frete. “Esse dinheiro não vai ficar no bolso do caminhoneiro. É um penduricalho que vai gerar gasto público, aumentar o déficit e a inflação”, afirmou. Segundo ele, o dinheiro não fica com o carreteiro porque, assim que ele recebe o vale, o grande embarcador, o grande contratante, reduz o preço do frete. “Fica pior ainda.” Representante de 164 mil empresas que geram 2,3 milhões de empregos no Brasil, o dirigente se revela contrário à “política intervencionista” do governo federal na questão dos combustíveis. “Não é o governo federal que deve falar sobre o ICMS. Quem sabe se pode reduzir ou até congelar o ICMS são os estados”, disse. “O governo federal deve delimitar o que pode fazer no âmbito dele em relação aos dividendos da Petrobras.”
As distorções criadas pelo atual regime tributário sobre combustíveis estão entre os principais obstáculos para a redução de preços. Os outros estão fora de controle: a cotação internacional do petróleo e a taxa de câmbio. Mas o Brasil já possui um mecanismo para equilibrar as diferenças de ICMS cobradas pelos estados, o que, segundo especialistas, evitaria a guerra fiscal, combateria a sonegação e reduziria os preços na bomba. “Não precisamos de novas PECs e sim de leis que regulamentem o tema sem reduzir a arrecadação”, afirmou o jurista Heleno Torres, professor titular de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Segundo ele, a Emenda Constitucional 33, de 2001, prevê uma alíquota uniforme em todo território nacional e monofásica. O regime monofásico atribui a um determinado contribuinte a responsabilidade pelo tributo devido em toda cadeia de um produto ou serviço. “Toda a tributação vai para o estado de consumo e não de produção”, disse Torres. “Esse modelo não foi implementado por falta de interesse político. Se entrar a monofasia, teremos aumento da arrecadação, com justiça fiscal e sem guerra entre estados”, afirmou.
O presidente da Federação Nacional do Comércio de Combustíveis e Lubrificantes (Fecombustíveis), Paulo Miranda Soares, também defende a monofasia para reduzir os preços de forma duradoura. “A melhor solução seria a mudança no sistema de cobrança do ICMS para monofásico e cálculo ad rem (cobrança em reais)”, disse. Hoje, a cobrança é ad valorem (percentual sobre o valor tributado). Além disso, o impacto na inflação é alto porque o período de apuração é curto, de apenas 15 dias. Transformar a alíquota em um valor fixo e por um período mais longo traria previsibilidade para a arrecadação e reduziria o custo de apuração e fiscalização. Segundo especialistas, se o valor passa a ser fixo, é mais fácil combater a sonegação – outro problema grave gerado pelo sistema tributário atual.
Um estudo da Fundação Getulio Vargas calculou em R$ 15 bilhões a perda anual de receita apenas com a sonegação de impostos que incidem sobre combustíveis. “Quando há possibilidade de sonegação, você atrai todo tipo de bandido para o setor”, afirmou o alto executivo de uma empresa de petróleo, sob condição de anonimato. Segundo ele, os crimes praticados sobre toda a cadeia, de roubo de cargas a adulteração, passando por fraudes nos postos, somariam outros R$ 15 bilhões ao ano. Evitar essas perdas exige ações que a PEC Kamizaze não prevê. “Estamos defendendo que, em paralelo à PEC, seja buscada uma solução mais estruturante, para colocar o país no caminho certo”, afirmou o executivo. “Nós temos um problema de curto prazo, que não é técnico, é político. Uma redução temporária pode mitigar o impacto do preço dos combustíveis no transporte público e nos fretes de alimentos, por exemplo. Mas essas medidas não podem ter um dono, um salvador da pátria. Se for assim, não vão andar.”
Para que isso ocorra, em vez de limitar as propostas aos interesses de Brasília, é preciso integrar as áreas envolvidas. Presidente e CEO da Volkswagen Caminhões e Ônibus, Roberto Cortes afirmou ser favorável a medidas que beneficiem a população e aumentem a produtividade do País. O executivo destacou que 60% das mercadorias entregues em território nacional são transportadas por caminhões, a maioria movida a diesel. “No frete há o custo logístico. E aí está embutido o famoso custo Brasil.” O combustível, segundo o executivo, representa o “custo número 1” para o setor no País.
A cotação internacional do barril de petróleo, que havia caído para menos de US$ 30 no início da pandemia, deverá se estabilizar entre US$ 80 e US$ 100 pelos próximos anos, segundo estimativas do setor. Por paradoxal que pareça, a alta deveria ser uma boa notícia para o Brasil, que produz e exporta a commodity. Isso gera riqueza na forma de lucros da Pertrobras, maior arrecadação de impostos para o governo federal e royalties para os estados. O problema é a forma como o País aproveita — ou não — essa riqueza.
GOVERNADORES Apesar de a discussão estar aquecida em Brasília, os governadores, maiores impactados por mudanças que envolvam o ICMS, não foram convidados a opinar sobre o assunto. Pelo contrário. Na quarta-feira (9), em uma comitiva pelo Nordeste, Bolsonaro alfinetou a governadora do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra (PT). “Sabemos das dificuldades da inflação e do preço dos combustíveis. Procure saber o quanto a sua governadora ganha aqui por litro de gasolina”, disse. Por lá, o ICMS responde por 29% do valor final da gasolina.
Desde setembro do ano passado, 21 governadores tentaram desvincular a ideia de que a alta vinha dessa oscilação tributária. Para isso, congelaram o valor do tributo desde então. O governador de Minas Gerais, Romeu Zema, afirmou que ele e sua equipe estão fazendo um sacrifício para conseguir manter os tributos congelados, porque as despesas ainda estão subindo. Ele também disse que a criação de um fundo compensatório não seria a melhor das ideias. “Em geral eles acabam ficando negativos”, disse.
Os estados arrecadaram R$ 637 bilhões em 2021, crescimento de 22,6% em relação ao ano anterior e um recorde, segundo o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz). Desse valor, 86% (R$ 547,8 bilhões) são provenientes do ICMS. O governador do Espírito Santo, Renato Casagrande (PSB), disse que “os governadores querem ser parte da solução, não do problema”. Segundo ele, muito mais prejudicial para o preço do combustível, que é dolarizado, são as instabilidades políticas. Nesse ponto, um presidente que escolhe apoiar uma PEC Kamikaze é quem mais pode provocar instabilidade.