A frase já foi reproduzida à exaustão, mas convém citá-la mais uma vez por seu caráter político-pedagógico: “Elites não têm de concordar comigo, mas não precisam ter medo”. A afirmação foi feita por Gabriel Boric, 35 anos, presidente eleito do Chile, durante uma entrevista à rede britânica BBC. Estratégico, ele se valeu da exposição na mídia internacional para tranquilizar as elites de seu país, sobretudo as que representam o mercado financeiro e que votaram em seu adversário, o líder do movimento de extrema-direita Ação Republicana, José Antonio Kast. Boric teve 55,8% dos votos. Uma vantagem não tão grande em uma eleição polarizada (como será a do Brasil este ano). Quando tomar posse, em 11 de março, o ex-deputado e ex-líder do movimento estudantil Esquerda Autônoma será o mais jovem presidente chileno. A pouca idade não é o único ponto que gera a desconfiança das elites.

Boric pretende governar de um jeito novo, pautado em temas da agenda ESG, como fez assim que se elegeu parlamentar, em 2014. Na Câmara dos Deputados, ele integrou as comissões de Direitos Humanos e Povos Indígenas e a de Trabalho e Previdência Social. O programa que o levou à maioria dos votos nas eleições presidenciais de 2021 é centrado na defesa dos direitos dos trabalhadores e em reformas sociais, incluindo a introdução de impostos progressivos para empresas e cidadãos mais ricos. Entre as metas mais ambiciosas — e de sucesso imprevisível —estão um seguro de saúde universal, um plano para lidar com a saúde mental, e investimentos para deter o aquecimento global. Até aí, é a cartilha da esquerda, com suas recorrentes críticas ao neolioberalismo, à concentração de renda e à ganância do setor financeiro. Mas há algo que vai além disso na cabeça de Boric — e talvez seja precisamente o que conquistou os eleitores, mesmo os arredios.

Ao montar seu ministério, anunciado na sexta-feira (21), o jovem Boric escolheu mais mulheres (14) que homens (10) e priorizou gente de pouca idade. Sete ministros não chegaram aos 40 anos e a média etária é 49. Muitas dessas pessoas ainda não enfrentaram as desilusões da vida pública e talvez vejam o mundo com a mesma lente idealista do futuro chefe. Houve espaço também para reparações históricas. Sua ministra da Defesa será Maya Fernández Allende, neta do ex-presidente Salvador Allende, o médico socialista deposto no golpe militar que colocou Augusto Pinochet na presidência, em 11 de setembro de 1973. Allende cometeu suicídio. A ditadura iniciada naquele ano no Chile se estendeu por quase duas décadas, deixando para a história a sádica marca de 40 mil pessoas torturadas e ao menos 3 mil mortes. A neta de Allende, que foi criada em Cuba, fazer parte do governo Boric é não apenas simbólico. É um sinal de que o mundo dá voltas. Curiosamente, apesar das propostas de taxação de riqueza e investimentos sociais, Boric escolheu para o ministério da Fazenda o atual presidente do Banco Central do Chile, Mario Marcel. Isso não quer dizer que a política econômica será a mesma da adotada pelo atual presidente, o bilionário liberal Sebastián Piñera, que sofreu um processo de impeachament rejeitado pelo Senado. O que Boric buscou ao convidar o presidente do BC chileno para titular da Fazenda foi sinalizar o mercado de que não fará nada radical como rasgar contratos e afugentar o capital estrangeiro. Ao mesmo tempo, atribui o dever de controlar as contas públicas a alguém que já sabe como as coisas funcionam no governo. Marcel tem 62 anos e é uma exceção à regra das escolhas de Boric.

Essa “concessão ao mercado”, se é que pode ser chamada assim, faz todo o sentido em um país como o Chile. Ainda que reconheça o quanto a ditadura de Pinochet foi sangrenta e corrupta, parte da população atribui ao regime militar a modernização da infraestrutura do país e a adoção de uma política econômica capaz de promover desenvolvimento sustentado e se manter acima da média de crescimento da América do Sul. Nem tudo é verdade. Ao adotar princípios do economista Milton Friedman, professor da Universidade de Chicago (onde também estudou Paulo Guedes), o Chile de Pinochet cresceu em média 1,6% ao ano, contra 4,36% da média anual em igual período (17 anos) após a ditadura. Se Boric fará o PIB chileno crescer mais ou menos que seus antecessores, pouco importa. O que todos esperam dele é que governe olhando para quem até agora não se beneficiou da riqueza gerada no país. Aí reside a esperança chilena.

Celso Masson é diretor de núcleo da DINHEIRO