O presidente Fernando Henrique Cardoso, depois de oito anos de mandato, é, com efeito, o maior defensor do seu próprio governo. Ele acredita ter liberado o câmbio na hora mais propícia, está felicíssimo com o último acerto com o FMI e garante que sua política de desestatização só não foi melhor porque não foi maior. As crises vieram, uma a uma, de fora para dentro. Renegando as críticas dos que não enxergaram uma política industrial em sua gestão, enumera pelo menos meia dúzia de setores em que acredita ter alcançado suas metas. Onde houve falhas, como no setor energético, justifica-as pela pressão vinda do setor público. Ainda que o dólar e a inflação estejam em alta, o presidente acredita ter deixado um legado de estabilidade econômica e democrática. No campo exterior, está preocupado com o unilateralismo dos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que acredita que o presidente George W. Bush pratica uma política construtiva em relação ao Brasil. Seguro sobre sua própria atuação nas políticas interna e externa, porém, Fernando Henrique não sabe ao certo qual lugar caberá a ele na história ? e não nutre grandes ilusões a respeito do julgamento imediato da população. ?O povo não percebeu Getúlio, que se suicidou, nem Juscelino, que saiu
corrido pela vassoura do Jânio?, compara. ?Acho que também não percebeu minha política social.? Feita no gabinete presidencial do Palácio do Planalto, a poucos dias do final de seus oito anos de governo, a seguir a entrevista exclusiva do presidente Fernando Henrique à DINHEIRO:

DINHEIRO ? O dólar voltou a cotações anteriores ao Plano Real. A inflação está de novo em dois dígitos. Será que nesses oito anos a economia deu uma longa volta completa? O que saiu errado?
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO ? Não é volta completa. É o resultado das especulações desencadeadas pelas eleições, que levaram a uma desvalorização do Real. Isso foi visível. Quando as linhas de crédito começaram a secar ? não pelas eleições, é claro, mas em decorrência da aversão do risco internacional ?, começou a ser visível também que as taxas de juros de prazo mais longo subiram e o apetite para comprar títulos brasileiros de longo
prazo foi diminuindo. Isso levou a um estreitamento de liquidez, que teve como conseqüência a pressão sobre o câmbio. Mas há
uma diferença grande em relação ao que tínhamos no passado, porque agora a economia não é indexada. Ou seja, o preço da moeda afeta uma parcela das mercadorias que utilizam insumos importados. Mas o preço do feijão, da carne, não vai variar em função disso. Hoje é mais fácil evitar que haja uma espiral inflacionária do que era no passado.

DINHEIRO ? O sr. quer dizer que a estabilidade está garantida?
FERNANDO HENRIQUE ? Desde que haja capacidade de operar. A estabilidade é como a liberdade, requer uma eterna vigilância. Sobre os preços e sobre as políticas fiscal, monetária e cambial. Não é uma coisa dada. Basta observar os Estados Unidos. Eles sobem e descem a taxa de juros de repente, para evitar que haja depressão ou aquecimento e, portanto, a inflação. Mas essa é uma questão controlável hoje. Antes da estabilização do Real era tudo indexado, não tinha o que se fazer.

DINHEIRO ? O presidente Getúlio Vargas foi lembrado por seu desempenho na área assistencial. Juscelino Kubitschek, pelo desenvolvimentismo. O sr. vai ser lembrado pelo quê?
FERNANDO HENRIQUE ? Sei lá. Talvez pela estabilidade. Não só da economia, mas num sentido amplo, das instituições e da consolidação da democracia. Isso permitiu, pela primeira vez, as políticas sociais focalizadas. Todo imposto de renda da pessoa física e jurídica que vem para o governo federal é redistribuído em forma de dinheiro para os mais pobres, com 12 programas sociais que nós temos. Ninguém nem sabe disso. O que se pode fazer em termos de distribuição de renda nós estamos fazendo. O resto é a empresa que tem que fazer, com aumento da produtividade e dos salários. Mas para os mais pobres nunca houve isso. Por isso o presidente do Banco Mundial mostrou outro dia, em dados que me trouxeram, que o Brasil, não tendo tido nesses anos um desenvolvimento econômico espetacular, teve um desenvolvimento social espetacular. Somos o País que mais celeremente melhorou em educação, saúde, acesso a terra e programas de assistência social. Por isso recebi em dezembro o prêmio das Nações Unidas para o líder que mais contribuiu para melhorar o Índice de Desenvolvimento Humano. Em contrapartida, nos anos 70, tivemos um enorme crescimento econômico e não houve crescimento social. Esse fato foi pouco salientado pela crítica, que diz que o governo só se concentra na estabilidade. Mas é justamente porque tivemos estabilidade, democracia e liberdade que tivemos condições de criar um sistema de políticas sociais que, com o tempo, vai melhorar o Brasil.

DINHEIRO ? O povo percebeu?
FERNANDO HENRIQUE ? Não. Mas o povo também não percebeu nada com Getúlio. Ele se suicidou. O Juscelino saiu corrido. Quem não se lembra da vassoura do Jânio para varrer a corrupção do Brasil? E de quem ele dizia que era a corrupção? Do Juscelino…

DINHEIRO ? O sr. acha que não está sendo compreendido, presidente?
FERNANDO HENRIQUE ? Não sei, mas não me queixo. Não tenho esse tipo de sentimento com relação a mim. O fato de me perguntarem sobre Juscelino e Getúlio e estabelecerem comparações, talvez seja porque não me consideram um governante tão ruim assim.

DINHEIRO ? O sr. prometeu fazer ruir a Era Vargas. Conseguiu? Valeu a pena?
FERNANDO HENRIQUE ? Se eu não tivesse feito isso nós não poderíamos entrar nesse novo século com chance de avançar. Eu não sei se na área trabalhista nós fizemos tudo o que tínhamos que fazer. Tanto assim que Lula está retomando as minhas palavras. Nós tentamos fazer a flexibilização da CLT, que era simplesmente manter todos os direitos e permitir que, se os sindicatos quisessem, pudessem negociar.

DINHEIRO ? Isso não foi muito bem compreendido.
FERNANDO HENRIQUE ? Isso foi usado pela CUT e pelo PT contra nós. Agora eu vejo o discurso do Lula e fico encantado. Ele está propondo o que eu queria. Então, nesse sentido, podíamos ter avançado mais nessa matéria. No resto, sim. Na mudança da estrutura do Estado, na redefinição das formas de relação do Estado com a economia, no tipo de controle da economia, aí, sim, vivemos hoje um momento diferente do momento de Vargas. O Estado nacional desenvolvimentista, o estatismo como base do desenvolvimentismo, não existe mais. Isso, nós conseguimos. E era necessário. E eu não estou criticando o que foi feito. Na época, fui favorável. E continuo sendo, mas para a época. O que estou dizendo é que precisava haver um aggiornamento, e esse houve.

DINHEIRO ? Não estamos desguarnecidos, com o Estado controlando uma parte menor da economia?
FERNANDO HENRIQUE ? Mas isso é bom. Chegou um momento em que o Estado não tinha mais recursos para investir. Então, parou de crescer. Pegue a telefonia. Se nós não tivéssemos privatizado teria havido essa revolução?

DINHEIRO ? E foi correto esse modelo.
FERNANDO HENRIQUE ? Eu não vejo outro. É competitivo. As empresas vão se fundir mesmo porque é da natureza e foi previsto que se fundiriam. A Telebras no regime militar foi um sucesso, mas se esgotou como forma de incorporar tecnologias e também como forma de acumular recursos para investir. Então, era preciso fazer isso. Não fizemos isso na geração de eletricidade.

DINHEIRO ? O modelo foi ruim na área de energia?
FERNANDO HENRIQUE ? O modelo foi incompleto. Privatizamos a distribuição e não a geração. Não foi falta de privatização, foi ausência de privatização.

DINHEIRO ? O que houve? O sr. foi mal assessorado?
FERNANDO HENRIQUE ? Houve muita resistência. As grandes corporações públicas, como Furnas e Chesf, resistiram muito à privatização. Furnas até o final. A Cemig também. A Copel resistiu menos, mas não foi privatizada. O modelo ficou incompleto. Agora, houve investimento privado. Quando assumi o governo, em 95, tínhamos entre 18 e 20 hidrelétricas paralisadas. Dessas, 15 estão funcionando hoje com capital privado. Embora não tenha havido a privatização das grandes estatais, houve o acréscimo de empresas novas.

DINHEIRO ? Com Sérgio Motta vivo isso teria sido diferente?
FERNANDO HENRIQUE ? Certamente. No plano político, não há duvida. O Sérgio fazia um contrapeso forte no Congresso. Gostava da briga e sabia fazer a reaproximação. Ele era muito bom.

DINHEIRO ? Ele preparou o sr. para a ausência?
FHC ? Não. Ele próprio não esperava morrer tão rápido.

DINHEIRO ? O que o sr. destaca como tendo dado certo no seu governo?
FERNANDO HENRIQUE ? Realizamos muito. Em termos de política industrial, por exemplo, atuamos em vários campos. Tome-se as ferrovias. Dizia-se que a rede ferroviária era sucata. Hoje está funcionando. E a Ferronorte e a Norte-Sul estão avançando. Os portos também estão mais modernos. Isso tudo é que é novo modelo de ação do Estado. Não é que o Estado perca importância nem controle. É outro tipo de controle que tem que haver, como feito pelas agências reguladoras. Mas nós nunca fizemos o que outros países fizeram, que é destruir completamente a capacidade do Estado de sinalizar, e mesmo de investir. Se você olhar o capital financeiro brasileiro, 60% dos depósitos são em bancos públicos, 20% em bancos nacionais e 20% em bancos estrangeiros. O principal banco do Brasil é a Caixa Econômica e o segundo é o Banco do Brasil. Outra coisa: nós não deixamos de ter o BNDES nem o Banco do Nordeste. O BNDES tem tanto recurso para investir quanto o Banco Mundial, e apóia a transformação das empresas nacionais. Nós mudamos completamente a siderurgia, a mineração, a petroquímica, papel e celulose, automobilística… Tudo isso deu um salto enorme nesses anos. Foi modernizado e hoje compete em nível internacional.

DINHEIRO ? O que o sr. pensa de quem diz que seu governo não teve política industrial?
FERNANDO HENRIQUE ? Penso que esses se enganam. O que não há é aquela política industrial antiga, com juros subsidiados e privilegiados para algumas poucas empresas, tarifas elevadas e, portanto, economia fechada. Isso não funciona mais. A economia está aberta e, por isso, é possível controlar não só os preços mais facilmente como aumentar a competitividade e levar à modernização das empresas.

DINHEIRO ? Há problemas graves, depois desses oito anos, com duas das empresas mais conhecidas do Brasil, a Varig e a Globo. O que fazer?
FERNANDO HENRIQUE ? O que vier a ser feito tem de ocorrer somente pela via da reestruturação e do mercado. Se elas se reestruturarem e tiverem viabilidade, o Estado pode eventualmente vir a ajudar. No caso da Varig, isso já vem de muitos anos. O governo apoiou muito, mas agora não dá mais. A empresa não fez o que tinha de fazer, que é modernizar mais a gestão. Ali é uma questão de gestão. No caso da Globo eu tenho menos informação, é mais a questão da Globo Cabo. Mas é a mesma coisa. Tudo depende de decisões que ela tem que tomar no mercado, e não o governo.

DINHEIRO ? Foi difícil tomar a decisão de virar o câmbio e quebrar a relação de paridade?
FERNANDO HENRIQUE ? Muito. Mas nunca houve paridade. O que ocorria aqui é que o câmbio deslizava mais lentamente.

DINHEIRO ? Teria sido a decisão mais difícil de seu governo?
FERNANDO HENRIQUE ? A decisão não foi essa. O mercado é que impôs a ruptura desse modelo que deixou o câmbio flutuando. Difícil foi, primeiro, a decisão de acelerar o deslizamento, fazer uma banda mais ampla e mudar mais rapidamente. Havia resistências. A população não queria isso. Nem o presidente do Banco Central, Gustavo Franco.

DINHEIRO ? Ele ficou tempo demais no seu governo?
FERNANDO HENRIQUE ? Não sei se ficou tempo demais. Ele fez um belo trabalho. Primeiro, a âncora cambial garantiu efetivamente a quebra da inflação e o real valorizado permitiu a modernização da indústria, que importou a preços baixos. É difícil julgar historicamente. Pode-se dizer ex post, depois de feita a história, que eu poderia ter mudado o câmbio pouco antes da crise da Ásia ou no começo de 1998. Mas todo mundo tinha medo da volta da inflação. A economia ainda era indexada. É difícil avaliar isso. As decisões são sempre difíceis. Os momentos mais difíceis, certamente, foram aqueles em que houve crise financeira provocada pela especulação internacional. E foram muitos. Espero que não haja mais, mas duvido que não haja.

DINHEIRO ? O ministro Pedro Malan foi seu ministro mais importante. Como o sr. avalia o trabalho dele?
FERNANDO HENRIQUE ? Eu não tenho dúvida alguma que a contribuição do Pedro Malan foi decisiva. Seja por sua persistência, por sua inteligência, por sua compostura ou por sua capacidade de diálogo, não só nacional, como internacional. Foi, portanto, um dos principais sustentáculos do governo.

DINHEIRO ? E quanto ao presidente do BC, Armínio Fraga, como o sr. o qualifica?
FERNANDO HENRIQUE ? Armínio tem uma qualidade excepcional: é um homem direto, simples, espontâneo e otimista. Pegou o Banco Central num momento dificílimo. Ele transformou o Banco Central numa coisa que a população hoje entende melhor, porque ele explica como as coisas são. Isso se tornou tão valioso que, agora, houve dificuldade para encontrar um nome que o substituísse.

DINHEIRO ? Qual sua opinião sobre a postura do presidente Lula?
FERNANDO HENRIQUE ? Suas declarações até agora são responsáveis. Ele e o PT perceberam que existem limitações para o governo e acho que descobriram que o controle das contas não é uma questão de neoliberalismo, mas de responsabilidade até social, por permitir que o País funcione. E descobriram que com câmbio não se brinca. Eu acho bom isso.

DINHEIRO ? O País continuará no rumo que seu governo traçou?
FERNANDO HENRIQUE ? Eu espero. O primeiro momento crucial é agora, na definição e atuação dos ministros. Nos primeiros seis meses veremos qual é a capacidade de operação deles. Porque uma coisa é você querer, outra é operar a máquina. Eu torço para que eles operem bem.

DINHEIRO ? O sr. gostou mais de cuidar da política ou da economia?
FERNANDO HENRIQUE ? Eu gosto mais da economia do que da política.

DINHEIRO ? O senador José Serra foi bom candidato ou faltou carisma?
FERNANDO HENRIQUE ? Eu não sei avaliar isso. O Serra é uma pessoa de muitas qualidades como ministro e como líder político. Talvez tenha sido o momento. Era muito difícil ganhar naquele momento.

DINHEIRO ? Uma resultante desses oito anos é também o último acordo com o FMI. Pode-se dizer que nunca estivemos tão amarrados ao Fundo quanto agora.
FERNANDO HENRIQUE ? É provável que uma situação como essa nunca tenha ocorrido porque nunca houve uma economia tão vinculada ao sistema financeiro como a que temos atualmente, globalizada. Hoje as necessidades de financiamento são complicadas. Ocorre, entretanto, que neste ano estamos assistindo a uma imensa expansão das exportações ? portanto um superávit da balança comercial muito grande ? e à diminuição drástica da transação geral de contas ? que não deve chegar a US$ 10 bilhões, mínimo necessário para se fechar as contas internacionais. Como o crescimento deste ano é de US$ 16 bilhões, nós temos ainda excedentes em dólares. É uma situação bem diferente, portanto, da primeira vez que fomos a Fundo. Chegamos a ter uma necessidade de US$ 33 bilhões. Agora nossa necessidade de financiamento é bem menor. E no próximo ano, provavelmente, será ainda menor. Isso significa menos necessidade de ter acordo com o Fundo. O acordo com o Fundo, aliás, é simplesmente uma chancela para dizer aos credores que o País está sendo bem administrado. E nada mais que isso.

DINHEIRO ? O Fundo não avançou todos os sinais, entrando agora até mesmo em questões de política fiscal?
FERNANDO HENRIQUE ? O Fundo não faz isso. O que o Fundo faz é discutir certas metas. Não há dúvidas de que ele era muito mais duro no passado, e incomparavelmente mais promissor. No momento em que se acerta aqui o programa de metas inflacionárias, o Fundo discute se as condições gerais da economia asseguram ? dado uma boa administração ? o alcance das metas, discute qual é o nível mínimo de reserva necessária para que o País tenha certa solidez, e discute qual é o nível de superávit necessário para que a dívida interna não extrapole. Com Fundo ou sem Fundo, ou o País faz isso ou vem a inflação e a dificuldade de rolagem dos compromissos externos.

DINHEIRO ? O Fundo não está, na prática, manejando a economia brasileira?
FERNANDO HENRIQUE ? Não. Nós próprios temos definido a meta quando vamos lá e discutimos com eles, e procuramos evitar que ela seja alterada. Às vezes não se consegue completamente, mas em geral sim. Muitos países, como a Argentina, podem se queixar do Fundo, mas não é o nosso caso. As duas últimas vezes que precisamos o Fundo nos apoiou com rapidez, sendo que no caso anterior nós nem usamos o dinheiro. Nem agora. As reservas que obtivemos ainda estão para sair.

DINHEIRO ? O sr. gostou do último acordo de US$ 30 bilhões?
FERNANDO HENRIQUE ? Ele foi muito importante. Foi rápido. Para o Fundo, a economia está bem gerida. É isso que ele está dizendo. Acontece que o mundo mudou tanto, os fluxos financeiros são tão rápidos e tão vultosos que, de alguma maneira, o mercado ficou mais forte do que o Fundo. Ele era muito forte há dez anos. De lá para cá, não é suficiente ele dizer ?eu dou o aval?. O mercado tem que crismar. O Fundo batiza e o mercado crisma. Se não crismar, não houve a confirmação do aval. Esse é um problema que não é do Brasil, é do mundo. Não há hoje uma instituição financeira internacional forte o suficiente para evitar que a mudança rápida de humor dos fundos financeiros produza um estrago.

DINHEIRO ? De alguma maneira o sr. antecipou essa discussão defendendo com veemência a taxa Tobin, mas não se avançou muito neste campo. Por quê?
FERNANDO HENRIQUE ? Faltou mais entendimento, talvez. Eu sou o único chefe de Estado de um país de peso que defende a taxa Tobin. Pode não ser essa taxa exatamente, mas algum mecanismo que crie uma base de liquidez grande, não só para propiciar condições de empréstimo melhores aos países em desenvolvimento, mas para solucionar as situações de aversão ao risco.

DINHEIRO ? Como isso seria possível?
FERNANDO HENRIQUE ? Conversei muito com o presidente Clinton sobre isso em Camp David, durante um fim-de-semana. Ele usou a expressão ?uma nova arquitetura financeira internacional?, que, no fundo, implicava refazer as instituições básicas. Ele me prometeu que faria a criação de um grupo para estudar a questão. E fez: o G-20. Pela primeira vez, um país como o Brasil, e outros hoje chamados emergentes, participaram desse grupo, que é para redefinir regras. Algumas foram melhorando em transparência e em certos mecanismos de provisão ? a questão da liquidez. Houve agora um outro avanço grande na negociação com o Fundo: a Petrobrás está livre para fazer investimentos sem que isso implique um aumento do endividamento do Brasil. Isso foi uma luta tremenda. A tese era de que uma empresa que é uma corporação pública, mas não depende do Tesouro, deve ser tratada como uma empresa privada. Eles consideram os investimentos das empresas que dependem do Tesouro um déficit. Mas nós conseguimos mudar essa situação. Para isso, tive que fazer um discurso forte no Ceará, na reunião do BID, que teve efeito. É que essas mudanças são muito complexas.

DINHEIRO ? O que o sr. acha do ritmo da diplomacia?
FERNANDO HENRIQUE ? Lento.

DINHEIRO ? É adequado aos tempos de hoje?
FERNANDO HENRIQUE ? Não, e eu diria até que a situação internacional piorou. Um país como o Brasil apóia o multilateralismo, as decisões compartilhadas sobre as questões internacionais. Nos últimos anos nós assistimos a uma volta ao unilateralismo. Agora, com a crise do Iraque, houve um momento importante de novo. Bem ou mal, a ONU voltou a assumir seu papel. O secretário-geral, Koffi Annan, tem tido um papel importante. Em vários momentos, sua atuação mostra de novo ao mundo a necessidade de termos regras. A decisão do poder pelo poder não deve valer. Mas isso é uma questão de força, não de intelecto.

DINHEIRO ? As relações brasileiras com os Estados Unidos tendem a ficar mais difíceis com o governo Bush?
FERNANDO HENRIQUE ? Se ele insistir no unilateralismo, sim. Mas eu devo dizer que o Bush, no caso do Brasil, teve uma atitude construtiva. Nessa última crise por que passamos, o governo americano só deu declarações favoráveis. O Fundo nos deu US$ 30 bilhões.

DINHEIRO ? O O?Neill tentou um discurso um pouco…..
FERNANDO HENRIQUE ? Eu reclamei e ele recuou. Mandei uma reclamação formal e ele voltou atrás. Nunca houve isso também. O ministro da Fazenda dos Estados Unidos pede desculpas porque disse uma frase que não era adequada. Agora, caiu.

DINHEIRO ? No Brasil, tivemos a impressão de que seu encontro com o presidente foi ruim. Não houve nem entrevista coletiva. Ele foi indelicado?
FERNANDO HENRIQUE ? Eu não vi assim. Até porque eu nem sabia da entrevista e não se tratava de uma visita de Estado, mas de trabalho. Eu não posso dizer que o presidente Bush não tenha dado consideração ao governo do Brasil. Posso até repetir um fato. O governo americano estava muito empenhado, como sempre esteve, na última vez que houve uma votação sobre direitos humanos em Cuba. Fez pressão de todos os lados para que os países mudassem de posição. Nós não mudamos de posição e ninguém nos pressionou. Nos respeitaram porque não temos um política estriônica, não ficamos fazendo ataques verbais aos Estados Unidos. E também porque sabem que é do interesse do Brasil o bom relacionamento com os Estados Unidos. Nós assumimos isso. Eu nunca entrei nessa retórica antiamericana porque eu acho que ela é negativa para o Brasil. Primeiro porque ela mistura o povo com políticas governamentais. Segundo porque nós hoje temos valores semelhantes ? direitos humanos, liberdade. O que nós não gostamos é do unilateralismo, do dumping utilizado de forma abusiva. Neste ponto, estamos sempre criticando e vamos à OMC. Agora, minha posição, mesmo antes de assumir o governo, é a seguinte: o caso do aço, por exemplo, é só sobre o aço, e não sobre os Estados Unidos. Uma vez eu estava conversando com o presidente Bush sobre várias coisas e, no final, ele me perguntou: ?Você não vai falar do aço??. Eu disse que não ia me preocupar porque sabia que ele cuidaria disso por mim. Não posso desconsiderar o fato de que estamos exportando mais aço. A atitude americana está se tornando menos restritiva. Acho que há sempre margem de negociação. Deveríamos saber usá-la com altivez, mas sem insolência.

DINHEIRO ? Da sua geração de líderes mundiais, qual é o maior?
FERNANDO HENRIQUE ? Eu diria dois. Helmut Kohl, que tinha uma presença muito forte, embora depois tenha tido problemas na Alemanha, e Bill Clinton. Eu diria que o primeiro-ministro de Portugal, Antonio Guterrez, e o presidente Jorge Sampaio também pertencem a esse tipo de líderes. Ocorre que às vezes as pessoas são muito boas, mas o país é pequeno, não permitindo que tenham visibilidade tão grande.

DINHEIRO ? O que deu errado na articulação da chamada terceira via?
FERNANDO HENRIQUE ? O problema não foi com a terceira via, mas com a articulação feita. Ela começou a ter um caráter, digamos, governamental. A primeira reunião, em Florença, foi muito pessoal. Os presidentes estavam ali como pessoas. Na medida em que foram se ampliando, as reuniões perderam dinamismo. Além disso, a própria idéia de terceira via, que foi mudando de nome e agora chama-se ?governança progressista?, teve muita visibilidade quando o (Tony) Blair apresentou seu programa para a eleição na Inglaterra e quando o Clinton se posicionou como um social-democrata, num contexto americano. Lá eles chamam de liberal. O Clinton não está mais no governo e o Blair, que já fez uma porção de coisas na Inglaterra, perdeu o interesse de propagar essa visão fora da Inglaterra.

DINHEIRO ? Tony Blair assumiu uma posição secundária em relação aos desejos de Bush e dos Estados Unidos.
FERNANDO HENRIQUE ? Com o Clinton era uma parceria, agora não sei se a posição é cômoda. Eu conversei por exemplo com o (José Maria) Aznar e com o (Antonio) Guterrez, quando estive na Europa, e depois falei com o Blair por telefone. Ele me ligou para me felicitar sobre o doutorado em Oxford. Tanto o Guterrez como o Aznar ressaltaram que, não obstante as aparências, a posição do Blair tem sido positiva para evitar que os Estados Unidos tenham posições muito guerreiras e muito unilaterais. Fora das aparências, ele tem tido essa posição. Também conversei com ele sobre a questão do Iraque e, efetivamente, estava empenhado em evitar a guerra.

DINHEIRO ? O que significa Hugo Chávez para a América Latina?
FERNANDO HENRIQUE ? O Chávez corresponde a uma visão que não é compatível com o Brasil de hoje. Uma visão profética, bolivariana. Ele quer o bem do povo, mas talvez não tenha construído os instrumentos para alcançar isso. Não tendo esses instrumentos, ele utiliza mais a palavra do que a prática. E isso desgasta com o tempo. Agora, curiosamente ? e eu estive conversando sobre isso com outros líderes ?, o Chávez, a rigor, não quebrou a legalidade nunca. Ele mudou a lei com voto. Ele está sendo apertado politicamente, mas não está apelando. Apela apenas para a massa, que é o estilo dele. A chamada democracia direta. Eu acho que precisamos na América Latina de uma coisa diferente disso. Precisamos reforçar as instituições democráticas. Porque são elas que asseguram a igualdade de direitos para todos. Se seu direito depende de uma pessoa, é arriscado. Isso costuma dar em ditadura. E esse é também o risco do populismo. Embora eu entenda a posição do Chávez, com tanta miséria, desigualdade e corrupção na Venezuela, ele ficou um pouco assustado e quis resolver tudo com um pouco de pressa, dando mais importância ao movimento e às palavras do que à lei e às instituições.

DINHEIRO ? Fidel é alguém do passado?
FERNANDO HENRIQUE ? Ele ficou numa posição isolada do fluxo da história. Com um efeito simbólico importante porque, bem ou mal, Cuba resistiu ao gigante, e isso dá uma força moral ao país. Em segundo lugar, Cuba manteve os ideais de igualitarismo. Tanto assim que não existe em Cuba uma nomenclatura, como existiu nos outros países. Por esses motivos, embora Cuba não tenha aberto um caminho de progresso, criou-se um certo carinho para com o país. A posição do Brasil com relação a Cuba é uma posição única no continente. Teríamos tudo para não ter proximidade: é um país distante e fala outra língua. Entretanto, temos proximidades de respeito e de apoio concreto: o Brasil dá crédito para Cuba, o Brasil não aceita isolar Cuba. Nós nunca fizemos como outros países, que eu não quero citar quais, que se arrogavam serem pró Cuba. Essa nunca foi a nossa posição. Entendemos que Cuba faz parte da história da América Latina e que, portanto, nós devemos abrir um crédito de diálogo e de confiança. Quando o Clinton era presidente, numa certa ocasião, a pedido dele, eu tive uma conversa com Fidel. Isso eu nunca faço, nem o Fidel gosta que alguém se preste a ser ponte, porque ele não precisa, se ele quiser ele tem. Essa coisa de patronagem não é bom. Um país como o Brasil não pode ficar com a pretensão de ser padrinho de outro.

DINHEIRO ? Mas na diplomacia presidencial direta isso é uma coisa comum…
FERNANDO HENRIQUE ? Sim, mas não tem esse sentido. É um sentido de camaradagem, não de proteção. Uma coisa mais informal. E nós temos um bom relacionamento com Cuba.

DINHEIRO ? Mas qual foi a conversa entre o senhores?
FERNANDO HENRIQUE ? Era uma questão de abertura de linhas de aviação dos Estados Unidos para Cuba, que interessava a eles naquele momento. Houve um incidente que não permitiu isso avançar. A intenção de Clinton era de facilitar. Eu só tentei ajudar.

DINHEIRO ? O sr. deixa o governo com a sensação do dever cumprido?
FERNANDO HENRIQUE ? Sem dúvida. Dei o melhor de mim, procurei juntar as melhores pessoas à minha volta, governei 24 horas por dia sem nenhum sobressalto institucional. Procurei desempenhar meu papel à altura do nosso grande País.