18/06/2003 - 7:00
Operários jogam na linha desativada: Com o estoque em alta, todas as montadoras deram férias
Tarde de quinta-feira na sede da Força Sindical. De um lado da mesa, oito representantes da Fiesp, a poderosa Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Do outro, cinco líderes dos metalúrgicos paulistas, que representam 455 mil trabalhadores. Entre eles, uma página datilografada com cinco itens, que Paulo Pereira da Silva, o presidente da Força, resumiu como ?proposta indecente?. Seus principais itens: redução de 20% dos salários, revisão dos acordos de reajuste firmados em março passado, parcelamento do pagamento de férias e redução do adicional por trabalho noturno. Em troca dessas concessões, os empresários oferecem estabilidade de emprego, ?por enquanto?. Se elas não forem feitas, não há qualquer garantia. ?Estamos pasmos?, diz Paulinho. ?Nunca fomos procurados com uma proposta tão radical.? Os sindicalistas rechaçaram a idéia de imediato, mas convidaram os representantes patronais a formar uma frente comum contra o governo. ?Não vamos mais aceitar a política econômica do PT?, diz Paulinho. ?O governo tem de sinalizar a retomada do crescimento.? Isso significa que cinco meses depois da posse parte dos eleitores de Lula está passando para a oposição. Trata-se de um marco simbólico. Tendo desapontado a elite industrial, o presidente-operário começa a ser mal visto por seus iguais.
Sem encomendas: Na Voith, em São Paulo, pedidos caíram a zero e teme-se demissões
Episódios como esse sublinham o deslizamento do cenário
econômico brasileiro. Nos últimos dias o País esteve soterrado por indicadores negativos vindos de todas as frentes. Soube-se na semana passada que a produção industrial em abril caiu 4,2% em relação a abril de 2002. E as vendas no comércio recuaram mais 3,82%, quinta queda consecutiva. Foi uma demonstração brutal de que a economia está parada, encolhendo e levando com ela
empregos e projetos de investimento, assim como a renda dos brasileiros. ?Faço boletins de conjuntura há 20 anos e nunca vi uma freada tão brusca na indústria?, constata o professor Ricardo Carneiro, economista da Unicamp e um dos autores do programa econômico com que o PT ganhou a eleição.
Drama em dois atos: falta trabalho na metalúrgica Seer e empresários fazem “proposta indecente” ao sindicato
A situação no chão de fábrica é dramática. Giorgio Della Seta, presidente da Pirelli Telecomunicações do Brasil, investiu US$ 20 milhões em uma fábrica de fibras ópticas em Sorocaba, interior de São Paulo. Erguida em 1997, essa planta deveria estar produzindo este ano cerca de 1 milhão de quilômetros de fibras. Mas nada disso aconteceu. A fábrica ficou fechada cinco meses em 2002 e vai parar agora por 90 dias. ?A população não tem renda para telefone. Conseqüentemente as companhias telefônicas não investem em cabos?, diz Della Seta. O seu não é um caso único. ?Ninguém faz dívida com medo do desemprego?, diz Cláudio Vita, vice-presidente da Itautec/Philco. A empresa, que vende televisores e computadores, convive com uma queda de 4% no seu faturamento. Desde janeiro já fez duas paradas de produção. Também o faturamento nominal da indústria de base, responsável pela produção de máquinas, caiu 25% desde o começo do ano. Luiz Carlos Delben Leite, presidente da associação do setor, a Abimaq, diz que ninguém está investindo. ?Não existe perspectiva de aumento do consumo?, resume. Em Betim, na Fiat Automóveis, sabe-se disso muito bem. ?Nos últimos três meses o mercado automobilístico retrocedeu aos níveis de 1993?, diz Alberto Ghiglieno, presidente da empresa. Em maio, a montadora perdeu 21% das vendas em relação ao mesmo mês do ano passado. Com os estoques em alta, a saída foi dar férias coletivas a 500 funcionários. Pulso da indústria nacional, responsável por 10% do PIB industrial do País, o setor automobilístico está com as rodas travadas. O período de março a maio foi o pior nos últimos dez anos. As coisas só não derraparam de vez porque o forte crescimento das exportações ? 33% de janeiro a maio ? está compensando a perda de volume no mercado interno. Mas a desaceleração dos automóveis repercute pesado no setor de autopeças. A Delphi, multinacional que tem 10 fábricas no Brasil e 7.500 funcionários, já registra diminuição de 5% nas vendas. ?No final desse mês começaremos a fazer paradas?, diz Martin Wells, diretor da companhia que fatura R$ 1,5 bilhão.
Crise geral. Esses depoimentos, mais que as frias estatísticas econômicas, mostram um País à beira da recessão. De acordo com o IBGE, não há setor que dependa do mercado interno que não tenha registrado diminuição nas vendas. Em abril as empresas de vestuário tiveram uma queda de 35,7%. Na indústria farmacêutica as vendas caíram 25,6%. E os fabricantes de material plástico perderam 24%. ?O alto custo do crédito e a perda do poder aquisitivo derrubaram as vendas?, diz a economista Clarisse Messer, diretora de pesquisa da Fiesp. A divisão de energia da Siemens, instalada em São Paulo, está em vias de terminar as últimas encomendas da era pré-apagão. A empresa emprega 1.100 pessoas mas pode chegar ao segundo semestre com zero de encomendas. ?Não tem jeito. Talvez precisemos fazer reduções no quadro de funcionários?, diz seu presidente, Adilson Primo. O mesmo se repete na Voith, fabricante de turbinas e geradores hidrelétricos. A empresa trabalha com 20% de ociosidade nas suas instalações e deve terminar este ano com pouco mais da metade do faturamento do ano passado. Desde janeiro não fechou nenhum contrato de grande porte. ?Não temos condições de manter a fábrica com tamanha ociosidade?, diz Julio Fenner, presidente da companhia. E não se trata apenas de um problema de empresas grandes. Na Zona Leste de São Paulo, a metalúrgica Seer, de 108 funcionários, teve 80% de queda nas vendas. Pôs 60 de seus funcionários em férias e não sabe como será o futuro. ?Estou há 32 anos na praça, mas não sei o que vai acontecer?, diz o empresário Narciso Detílio.
A freada da economia, que trouxe a inflação anualizada de 20% para 8%, é resultado de uma combinação de três remédios: elevação da taxa de juros básica da economia, que está em 26,5%; corte nos gastos do governo, expresso pelo superávit primário de quase 7%, e revalorização do real, que desde janeiro passou de R$ 3,55 para
R$ 2,86, ferindo as exportações. Juntos, esses medicamentos constituem uma espécie de quimioterapia econômica. Ao reduzir a inflação arriscam matar o paciente. As vendas de eletrônicos no primeiro trimestre, por exemplo, caíram nada menos que 15% em relação ao primeiro trimestre de 2003. As montadoras estão com ociosidade média de 44% em suas linhas e têm nos pátios um estoque equivalente a 45 dias de vendas. O setor de embalagens, que antecipa em alguns meses a produção de outras áreas da indústria, registra uma queda de encomendas de 15% nos dois últimos meses. Isso, somado ao desemprego de 20,6% em São Paulo, faz supor que, ao contrário do que tem dito o governo, o País não está no fim de um ciclo de crise, mas no começo de algo que pode ser terrível. No primeiro trimestre de 2003 a economia encolheu 0,1% e o Ipea, instituto de pesquisas econômicas do Ministério do Planejamento, projeta queda de 0,8% para o período de abril a junho. Se não bastasse a evidência dos fatos, dois trimestres seguidos de encolhimento do PIB configuram recessão.
?Estamos indo para uma retração pior que a do começo dos anos 80?, avisa o economista João Manoel Cardoso de Mello, diretor das Faculdades de Campinas e da pós-graduação da Unicamp. O deputado Antônio Delfim Netto, que presidiu sobre a economia brasileira naquele período sombrio, também está preocupado. Teme que se esteja acendendo velas ao santo errado. ?As pessoas terão um enorme desapontamento quando as taxas de juros caírem?, diz ele. ?Os juros são bons para criar recessão, mas não servem para revertê-la. Depois que se entra no túnel é difícil sair.? Logo, dizem os especialistas, é essencial que o governo reaja agora, reativando a economia antes que o deslizamento soterre o essencial.
Na semana passada, refletindo o medo de um desastre, vieram a público nada menos que três manifestos exigindo mudanças. O primeiro, urdido nas hostes da esquerda e batizado de Agenda Interditada, pede a ?inversão da política econômica?. Foi assinado por duas centenas de economistas. O outro, feito pelos industriais do Iedi, a ONG comandada por Ivoncy Ioschpe, tem o título de Ladeira Abaixo e pede a redução imediata da taxa de juros ?para superar o quadro recessivo?. O terceiro manifesto veio à luz na tarde de quinta-feira, em Brasília, e foi o mais danoso ao governo, ainda que o mais moderado. Ele foi rascunhado no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social e resultou de um tenso confronto entre seus integrantes. Uma parte deles, liderada por Antoninho Marmo Trevisan e apoiada inicialmente por Horácio Lafer Piva, da Fiesp, queria uma declaração endereçada ao presidente Lula. Ela chegou a ser redigida com 22 linhas, continha a palavra ?crise? e mencionava ?renegociação de contratos?. Houve pânico. Os banqueiros se recuaram e o empresário gaúcho Paulo Vellinho puxou o freio de mão. ?Essa declaração vai emparedar o presidente?, disse. Abílio Diniz, do Pão de Açúcar, também retirou seu apoio à nota: ?Seria pressionar o presidente?. A assembléia de 82 membros dividiu-se. A solução de consenso foi deixar o presidente saber pelo secretário-executivo Tarso Genro como os membros do conselho realmente se sentiam, enquanto as queixas e sugestões iriam para o documento oficial em linguagem cifrada: ?Existe uma perspectiva de redução da dívida pública que só pode ser mantida desde que ocorra uma redução gradual da taxa de juros, que deve começar o quanto antes?.
Um soldado. Com o País em clima de bombardeio, o Ministério da Fazenda fechou-se num bunker e pôs um único soldado na rua. ?Estamos começando a respirar crescimento?, garantiu Otaviano Canuto, secretário de Assuntos Internacionais. Para apoiar essa frase otimista, não mostrou nenhum indicador que sugerisse que o Brasil começou a sair da crise. Em vez disso fez uma profissão de fé malaniana na necessidade de controlar a inflação e subordinar o País à terapia dos juros. ?Estamos plantando as sementes do crescimento?, afirmou ?Quando tivermos certezas de que a inflação está sob controle vamos baixar os juros.? Como medida de desafogo, o secretário prometeu estímulo ao microcrédito e recursos para a exportação. Há uma reunião do órgão que decide os juros, o Copom, marcada para terça e quarta-feira desta semana. Seria uma excelente ocasião
para reduzir a taxa e começar a tirar o País do coma. Mas
tudo indica que imaginação e ousadia estão em baixa na cúpula econômica do governo.
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O Brasil que deve |
A primeira vítima de uma economia em marcha lenta é o orçamento da classe média. Por todos os lados pipocam números reveladores de que as dívidas estão imprensando as famílias brasileiras contra a inadimplência. Nada menos que 35% é o índice de mensalidades em atraso nas 44 mil escolas e faculdades particulares do País. ?É nosso recorde negativo?, atesta o presidente da Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino, Roberto Dornas. ?A maioria das escolas tem problemas de fluxo de caixa.? Outro ícone financeiro do brasileiro ? o talão de cheques ? está sendo manchado pela crise. Em relação a maio do ano passado, o número de cheques sem fundos na praça aumentou 18% este ano. Foram 3,25 milhões de cheques voadores em todo o País, recorde desde 1991. Na cidade de São Paulo, a Associação Comercial revela que para cada 100 consultas de crédito, 16 são negadas. A prestação da casa própria igualmente está sofrendo diante do bolso esvaziado. O atraso repete os piores momentos da inadimplência verificados durante os anos 80 e 90. ?É como se tivéssemos voltado ao passado mais negro da história dos mutuários?, reforça Anthony Oliveira Lima, da Associação Brasileira de Mutuários da Habitação. Ele calcula que, apenas na Caixa Econômica Federal, entre 30% e 40% dos contratos estão com pagamentos atrasados mais de dois meses. ?As famílias não têm poupança para se segurar na hora em que o emprego desaparece ou a renda cai?, diz o economista Luís Carlos Ewald, professor da Fundação Getúlio Vargas. |