Na França do século 18, um grupo de intelectuais estruturava aquela que é considerada, ainda hoje, a primeira teoria bem desenvolvida da economia. Batizada de fisiocracia, ela defendia a ideia da terra como fonte de toda a riqueza de uma nação. Daí o nome que tem raízes nas palavras gregas fisios (natureza) e kratia (governo), ou “governo da natureza”. O conceito francês guarda paralelo com outro bem atual: o da bioeconomia. Este, porém, muito mais amplo. Um governo baseado na bioeconomia teria como premissas o uso e a administração dos recursos da natureza com respeito e inclusão dos povos nativos para a geração de capital. Nas palavras do cientista Carlos Nobre, uma das maiores autoridades globais sobre mudanças climáticas, essa economia verde aproveitaria “o valor de uma floresta para, com a ajuda de novas tecnologias, estabelecer um novo modelo de desenvolvimento econômico socialmente inclusivo”. Na Amazônia, o valor gerado pela natureza é estimado em cerca de US$ 300 milhões. O cálculo foi apresentado pelo professor da Universidade de Nova York Salo Coslovsky durante o seminário Investimento em Bioeconomia em Florestas Tropicais.

Pelo estudo de Coslovsky, a Amazônia participa com apenas 0,17% do mercado global para produtos originários deste bioma, avaliado em US$ 176 bilhões. E, pior, a economia local perde de longe a liderança nas vendas de itens abundantes no território, como cacau e castanhas. A situação é vista com preocupação por Carlo Pereira, diretor-executivo do Pacto Global da ONU. “A maluquice é que nos 64 produtos da Amazônia já exportados, perdemos em relevância para mercados bem inferiores”, afirmou. Costa do Marfim é a líder em cacau com 40% do mercado global, enquanto a Amazônia participa com 0,02%. Em castanhas a liderança pertence à Bolívia com 52%, enquanto a floresta brasileira abastece 4,4% da demanda mundial (gráfico à pág. 30). De acordo com Pereira, caso a bioeconomia amazônica fosse melhor explorada, de forma responsável e estratégica, poderia gerar receita de R$ 1,3 trilhão.

NOVO OLHAR Apesar dos números, o governo federal insiste em olhar a região com descaso, como comprovam os 17.867 mil km2 de área desmatada durante a gestão Bolsonaro. Os números alarmantes levaram, cientistas, empresas e entidades civis como o Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (Idesam) a se unir para mudar o olhar sobre a região. “O desmatamento não interessa aos atores econômicos sérios, mas a bioeconomia amazônica sim”, afirmou Mariano Cenamo, diretor de Novos Negócios da entidade e CEO da AMAZ, uma aceleradora de impacto da região. Em seu segundo chapéu, Cenamo atua diretamente com possibilidades de negócios vindo da floresta. A aceleradora, que tem um fundo de R$ 25 milhões, já investiu em 30 startups ligadas ao uso econômico dos recursos da região, com conservação de 5 milhões de hectares e 10 mil famílias beneficiadas em cinco anos.

Se os donos do poder temporariamente instalados em Brasília pensam que a floresta em pé é pouco lucrativa, deveriam se assessorar melhor. Carlos Nobre, no documento Amazônia 4.0, um dos mais relevantes estudos sobre o potencial do uso dos 5,5 milhões de Km2 do bioma, joga luzes em números capazes de fazer os donos do dinheiro se sentarem à mesa para conversar. De acordo com ele, enquanto a pecuária gera de US$ 30 a US$ 100 por hectare (ha) por ano de renda líquida e a soja, de US$ 100 a US$ 200 ha/ano na Amazônia, alguns ativos biológicos encontrados por lá teriam valor agregado muito mais interessante.

Exemplos: o óleo de pau rosa usado em perfumes como o Chanel No 5 é avaliado em US$ 200 o litro; o óleo da castanha do Pará é vendido a US$ 30/L para uso em cosméticos e a US$ 150/L como suplemento alimentar; e o açaí apresenta lucro líquido médio de US$ 200 ha/ano em sistemas não manejados a até US$ 1,5 milhão em sistemas agroflorestais. Isso sem contar os ganhos periféricos, segundo Marina Grossi, presidente do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS). “As soluções baseadas na natureza (SBN) podem render US$ 17 bilhões em receita, além de contribuir para o cumprimento de 40% das metas do acordo de Paris”. (Em SBN conta-se também redução de risco de desastres com base no ecossistema; serviços climáticos; infraestrutura natural e verde entre outros).

Uma das empresas que mais se beneficiou com diferenciação de marca, reputação institucional e retorno financeiro ao olhar os bioativos da Amazônia de forma estratégica foi a Natura. Desde 2010, a empresa contribuiu com R$ 2,1 bilhões de negócios na região, incluindo investimentos diretos em centros de inovação, cadeias produtivas, além de fortalecimento de parcerias que também passaram a aplicar recursos na região. Hoje, utiliza 38 bioativos da floresta beneficiando 40 comunidades e 7 mil famílias. Para comprovar que age de maneira responsável, é uma das únicas no Brasil a ter o selo Union for Ethical BioTrade, selo internacional que comprova o respeito de ingredientes provenientes da biodiversidade para fins econômicos. Mas, de acordo com Andrea Álvares, vice-presidente de Marketing, Inovação e Sustentabilidade, a escolha trouxe grandes desafios à marca. “A produção é regulada pelos bioprocessos em que o ciclo da natureza e os povos que produzem os bioativos são mandatórios”, afirmou. “Tivemos que ser humildes para entender que a lógica de produção ao entrar em um bioma como o Amazônico, e querendo atuar com bioeconomia, é muito diferente da industrial”.

Compreender essa mudança de paradigma é um dos grandes empecilhos para que mais empresas consigam atuar nesse ramo da economia verde. Para Rubens Born, analista de acordos internacionais em meio ambiente da Fundação Esquel, o Brasil terá que sair de uma bioeconomia da degradação, para a da construção. “Nossa economia ainda é baseada em crescimento ilimitado sem respeito aos limites da natureza. No novo modelo não teremos todos os produtos que queremos a toda hora”, afirmou. Mas haverá diversidade. Empresas que atuam na região, como a própria Natura e o Grupo Sabará, uma das fornecedoras da marca de cosméticos, já estão aprendendo a lidar com essa característica. “O problema da bioeconomia é escalar e respeitar a natureza ao mesmo tempo”, afirma o presidente Ulisses Sabará. A empresa tem relação com mais de 8 mil famílias e foi reconhecida pela ONU em 2016 como pioneira na ODS 15 – Proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da terra – pelo trabalho que realiza junto às cadeias do açaí, cupuaçu, patuá e outros ativos. Para proteger a natureza usa sistemas agroflorestais, além de manipulação racional dos recursos naturais para permitir a regeneração do ecossistema.

Ernesto Rodrigues

“O embaraço da Amazônia é investimento, mas enquanto isso o Fundo da Amazônia com quase R$ 2 bilhões foi congelado pelo Bolsonaro” Flávio Dino governador do Maranhão.

ALIMENTOS Mas não é só a indústria da beleza que enxerga na megadiversidade da Amazônia um campo fértil para os negócios. Com mais de 30 mil espécies de plantas à disposição, o setor de alimentos e bebidas está cada vez mais interessado e próximo das oportunidades escondidas sob o topo das árvores. O apoio do Fundo JBS pela Amazônia, criado com aporte inicial de R$ 250 milhões com meta de chegar a R$ 1 bilhão em 2030 foi fundamental para que os cacauicultores João Evangelista e Nayara Rios, do projeto RestaurAmazônia, tivessem as suas amostras selecionadas para a mais prestigiada premiação do setor no mundo, o Prêmio Internacional do Cacau, que ocorrerá em Paris em outubro. Uma cadeia que também é apoiada pelo Legado Integrado da Região Amazônica (Lira) que beneficia 500 produtores de cacau e mais sete projetos de ativos como castanhas e óleos com investimento de R$ 11 milhões. Uma das dificuldades apontadas por Neluce Soares, coordenadora do projeto, para dar mais escala é a informalidade que impera na região. “Hoje somente 59% das 385 associações e cooperativas têm todas as documentações exigidas. Além disso, 85% estão em fase inicial e necessitam de apoio de gestão”, afirmou.

Foi nesse ponto que a Coca-Cola mais avançou com o seu programa “Olhos da Floresta” para desenvolver a indústria do guaraná amazônico. Em cinco anos foram investidos R$ 8,6 milhões na compra da mercadoria que veio acompanhada, segundo o agrônomo da empresa, João Carlos Santos, da reestruturação do modelo de negócio. “Um dos grandes problemas para o desenvolvimento da região eram os intermediários que faziam a ponte com os produtores sem relações justas”, disse. Para mudar o quadro, a empresa estabeleceu relações de negócios diretas com as cooperativas e associações estabelecendo que decisões como o valor do produto, margens, investimentos e adoções de boas práticas fossem decididas em conjunto pela comunidade.

Ana Paula Paiva

“Tivemos que ser humildes para entender que a lógica de produção ao entrar em um bioma como o Amazônico é muito diferente da industrial” Andrea Álvares VP da Natura.

FUTURO Enquanto Brasília continua míope para a receita que a floresta de pé pode trazer para o País, os governadores se unem de olho no retorno econômico e político que ela pode gerar. Sob o comando do governador do Maranhão, Flávio Dino, o Consórcio da Amazônia Legal lançou o Plano de Recuperação Verde da Amazônia, um fundo de R$ 1,5 bilhão para ações de desenvolvimento sustentável sem envolvimento do governo federal. “O embaraço da região é investimento, mas enquanto isso o Fundo da Amazônia com quase R$ 2 bilhões foi congelado pelo Bolsonaro”, afirmou Dino à DINHEIRO. De acordo com o governador, para atrair capital internacional, “o Brasil tem que apresentar resultados auditáveis de compromisso ambiental para deixar para trás a imagem de um país que só pede dinheiro em troca de nada”.

Pesquisadores são categóricos ao reforçar que o potencial de geração de riqueza com sustentabilidade e inclusão do bioma é inegável. Mas Virgílio Viana, da Fundação Amazônia Sustentável (FAS) traz as ideias para o chão. “O debate ainda é teórico e o papel aceita tudo. Está na hora de agir”, afirmou. Aí que são elas. Sem romancear as oportunidades da floresta, aliar atividade econômica e a sustentabilidade socioambiental da região traz desafios de várias ordens. Falta de conectividade, escassez de crédito, êxodo dos cérebros locais, pouco conhecimento de gestão dos produtores, logística, informalidade, criminalidade e ilegalidade são alguns dos exemplos citados por Viana. Mas há ainda um maior. “Os governos não têm um plano consistente para a região e pioram tudo ao desconstruir o que já foi feito”, afirma. Para mudar o cenário, ou a sociedade civil se organiza e pressiona as autoridades por um compromisso de longo prazo ou continuará vendo árvores no chão e o dinheiro indo pelo ralo.