Com insultos a aliados, um fraco por governantes autocráticos e desrespeito por acordos internacionais, o presidente Donald Trump abalou a política externa dos Estados Unidos por quatro anos caóticos.

Mas existe uma “Doutrina Trump” sobre a qual os eleitores da maior potência mundial vão se pronunciar em 3 de novembro, quando decidirão reeleger Trump ou optarão pelo democrata Joe Biden?

Trump adotou o lema “América Primeiro”, refletindo suas promessas de campanha em 2016 de conter a imigração, confrontar uma China em ascensão, renegociar acordos comerciais que ele considerava prejudiciais aos americanos e acabar com “guerras sem fim”.

E isso refletiu em sua política externa: limitou a chegada de migrantes, em sua maioria centro-americanos, entrou em choque com Pequim, renegociou o tratado de livre comércio com o México e o Canadá, agora T-MEC, e não se envolveu em nenhum novo conflito bélico – chegando a prometer acelerar a retirada das tropas do Afeganistão.

“Acho que existe uma espécie de ‘Doutrina Trump’, embora obviamente não se encaixe no padrão usual de Washington”, opina Colin Dueck, acadêmico do American Enterprise Institute.

O magnata do mercado imobiliário, de 74 anos, que costuma se gabar de suas habilidades de negociação, também mostrou que não mede palavras num confronto.

Ele zombou da “estupidez” do francês Emmanuel Macron, chamou o canadense Justin Trudeau de “desonesto” e mostrou seu desdém pela alemã Angela Merkel.

Em contraste, elogiou sua “química” com o norte-coreano Kim Jong Un e surpreendeu com seu espírito conciliador com o russo Vladimir Putin.

“Ele está aberto para negociar com quase qualquer pessoa que não seja o grupo Estado Islâmico”, diz Dueck sobre Trump.

De acordo com o especialista, o presidente revive, de certa maneira, a abordagem de política externa dos líderes republicanos de um século atrás.

“Estados Unidos como um ator independente, alheio aos compromissos multilaterais e olhando para o mundo do ponto de vista de se algo serve ou não aos seus interesses, foi a corrente principal da política externa americana por gerações antes da Segunda Guerra Mundial”, recorda.

– Agenda pessoal –

Trump, atrás de Biden nas pesquisas, conquistou recentemente algumas vitórias no cenário internacional.

Sob sua mediação, Emirados Árabes Unidos e Bahrein normalizaram relações com Israel, um sucesso para o Estado judeu que é seu grande aliado, e uma oportunidade de ter o apoio nas urnas dos cristãos evangélicos americanos pró-Israel.

Além disso, o governo do Afeganistão e o Talibã iniciaram negociações de paz. E Washington conseguiu persuadir mais nações a rejeitar a China ao adotar a internet de quinta geração.

Mas as relações chegaram ao fundo do poço com os europeus, que se ressentem do estilo rude de Trump e do desprezo pela diplomacia.

O inquilino da Casa Branca abandonou o Acordo Climático de Paris, o pacto de energia nuclear iraniano, o acordo de livre comércio transpacífico e, em meio a uma pandemia, a Organização Mundial da Saúde.

Trump “merece crédito” por concluir o T-MEC e lançar ‘América Cresce’, um esforço para fortalecer a cooperação econômica com a região e “uma exceção a uma agenda negativa”, ressalta à AFP Michael Shifter, presidente do Diálogo Interamericano, com sede em Washington.

Na América Latina, Shifter destaca a postura linha-dura de Trump em relação aos líderes venezuelanos Nicolás Maduro; e da Nicarágua, Daniel Ortega; e em relação ao governo castrista de Cuba, “em contraste com sua aproximação de homens fortes em outras partes do mundo”.

Mas, segundo ele, por um motivo simples: “A política da Flórida e sua busca pela reeleição”.

Todo presidente americano tem uma agenda política pessoal em algum grau, “mas nunca” como Trump.

“Na medida em que existe uma ‘Doutrina Trump’, isso significa fazer o que é melhor para ele”, aponta.

– Incerteza –

De acordo com uma pesquisa do instituto Pew, a opinião sobre os Estados Unidos em outras nações ricas despencou a mínimos históricos por dúvidas sobre a liderança de Trump, especialmente sobre como lidar com a pandemia de covid-19, que atinge duramente os Estados Unidos.

Thomas Wright, pesquisador da Brookings Institution, argumenta que Trump tem poucas conquistas reais e que sua política externa, em grande parte, tem “flertado com a catástrofe”.

Os árabes do Golfo estão se aproximando de Israel há uma década, enquanto um posicionamento mais duro em relação à China faz parte de um consenso bipartidário em Washington, acredita.

Por outro lado, Trump levantou pela primeira vez questões sobre os compromissos dos Estados Unidos com a aliança da Otan, insistindo que não quer gastar mais dinheiro com parceiros incapazes de se defender.

“Acho que há uma incerteza sobre o papel dos Estados Unidos no mundo que não existia antes”, afirma Wright.

“Com a combinação Trump-covid, realmente não sabemos se algum dia retornaremos a uma economia global mais aberta.”