Uma das primeiras mulheres negras a ocupar a cadeira número 1 de grandes companhias no Brasil, Rachel Maia hoje usa sua experiência com a diversidade para ajudar executivos a entender a necessidade da inclusão no mundo. corporativo

Quando se pesquisava no Google, há cinco anos, sobre mulheres e negras em cargos de liderança no Brasil, surgiam associações quase exclusivamente vinculadas ao nome de Rachel Maia. Elas eram apenas 0,4% na posição de topo de companhias em 2016, segundo o Instituto Ethos. Hoje são 4,6%.

E foi justamente no ano da crise que a executiva – que já foi CEO no Brasil da grife Lacoste e das joalherias Pandora e Tiffany & Co., e integra conselhos do grupo Soma, CVC e Unicef Brasil – entendeu que poderia compartilhar junto a outros presidentes de empresas a necessidade de um universo corporativo com mais diversidade e inclusão. Para Rachel, que lança na próxima semana o livro Meu Caminho até a Cadeira Número 1, a posse de Kamala Harris como vice-presidente dos Estados Unidos representa um processo de transformação da sociedade.

DINHEIRO – Na esteira do lançamento do seu livro Meu Caminho até a Cadeira Número 1, o que significa uma mulher negra ter ocupado a cadeira número 1 de grandes companhias no Brasil?
RACHEL MAIA – Nunca fiquei refletindo sobre a cadeira. Eu sempre trouxe para mim a responsabilidade do crescer, de fazer jus de estar ali. Eu não pensava no lugar que eu ocupava e sim em estar à altura do lugar que estava ocupando. Sempre tive a destreza de pegar uma nota de 10 e transformar em uma de 100. Ao mesmo tempo, comecei a entender o que meus pais falavam que conhecimento era poder. Tinha também que estudar, ler livros. Isso abriu a minha mente para que pudesse desbravar outros universos. Não tinha gente como eu, mas não olhava dessa forma. Só pensava que tinha mais oportunidades. Recebia muito mais não do que sim, mas isso não me inibia. Essa resiliência foi uma característica para poder fazer jus a estar na cadeira número 1.

Você precisou fazer mais do que os outros para poder conseguir espaço?
Sempre. Fiz três MBAs e estou fazendo um quarto. Eu sei que tem uma cobrança, uma necessidade de respostas do tipo “Por que está contratando a Rachel?”. Essas chancelas se faziam necessárias. E não era algo subliminar, era explícito. Não podia ser só uma presidente formada em Ciências Contábeis na FMU (Faculdades Metropolitanas Unidas). Tinha que ter aperfeiçoamento em Harvard, MBA, estudar inglês no Canadá. Só Deus e eu sabemos o que passei para conseguir estudar fora, com só uma refeição por dia por falta de dinheiro durante quatro meses. Não sei se todo presidente de companhia precisou ter quatro MBAs no currículo.

“A posse de Kamala Harris empodera todas as mulheres e todas as mulheres pretas. Para mim, ela é a próxima presidente dos Estados Unidos” (Crédito:Nicholas Kamm/AFP)

E se fosse um homem branco com quatro MBAs?
Seria presidente do mundo. A gente já entendeu que isso é unfair [injusto] para a mulher preta. Eu venho da periferia da Cidade Dutra, Zona Sul de São Paulo, onde a grande maioria de mãe solteira é de pele preta retinta. E isso precisa ser falado. A diversidade não precisa mais estar nas entrelinhas. Quem está incomodado, vai ter de se retirar.

O peso de ter sido CEO no Brasil de marcas internacionais como Lacoste, Pandora e Tiffany era maior aqui ou no exterior?
Sem dúvida nenhuma aqui. Eu viajei muito. Teve ano que fui 17 vezes para a Dinamarca, sede da Pandora. No Brasil, o título vem na frente da pessoa. Eu já cheguei a ouvir: “Você não precisa se sentir mais preta porque é presidente”. Essa conotação da cor versus o título é muito forte aqui. A gente precisa reconhecer que a discussão sobre diversidade começou antes nas multinacionais. E as empresas nacionais começaram a seguir esses exemplos, e isso é muito importante. Tudo isso traz incômodo, reflexão e até mesmo dor no bolso. Ou você vem pela força financeira ou vem pela força social.

Ainda assim, você viveu algum episódio, como presidente, que tenha se sentido incomodada?
Eu agarrei oportunidades. O que me fez ser contratada por essas empresas não foi a diversidade, mas o que poderia oferecer e o resultado que tinha dado de uma empresa para outra. Via de regra, recebia muito apoio dos presidentes globais. O que às vezes aconteci, era aquele preconceito velado, em que te recebem muito bem, mas não se vê muitos iguais. No Brasil foi muito mais duro. Ser CEO representando a negritude é diferente hoje. Há algum tempo, quando tiravam um negro de uma fila VIP do aeroporto, não podia reclamar. Hoje, já dá. Quando isso aconteceu comigo, há anos, tive de ficar mostrando meu cartão de embarque.

Hoje 4% de mulheres negras ocupam posições de liderança em empresas no Brasil. Quando poderemos mudar esse cenário?
Para ser exato, hoje são 4,6%. Há cinco anos, ou você usava o dígito 0,4% ou usava o nome Rachel Maia. Mas não dá para demorar outros cinco anos para crescer mais 4. Se você olhar os matriculados nas faculdades públicas, o número já é maior para negros. Isso é uma demonstração de empoderamento sem precedentes. Não podemos demorar mais para que o número de mulheres negras em posição de liderança alcance dois dígitos.

As ações de ESG hoje no Brasil são de verdade?
As empresas estão no processo de compreensão. E isso leva tempo. Estudei ESG para que eu, como líder, pudesse entender como poderia reagir representando a diversidade. Para me proteger e me instruir dessa temática tão absurda, que não é minoria. O que ocorre é que a maioria é minorizada. Hoje o mercado se vê obrigado a entender um pouco mais essa questão. Precisa ser entendido que, em vez de ganhar 30, a empresa vai ter de ficar com 25 e redistribuir 5 para a sociedade. Esse é o desafio. E estamos caminhando.

Foi isso que te motivou a criar uma empresa de consultoria?
Sim. O ano de 2020 foi de inflexão. O aprendizado que estamos tendo na crise iremos levar daqui para frente. Antes da pandemia, já havia tomado a decisão da participação em conselhos. Foi uma virada para os meus 50 anos. Refleti e passei a entender que tudo que vivi e falo nas palestras poderia compartilhar com as empresas. Tirar da Rachel primeira pessoa do singular e levar para o coletivo. Tenho feito mentorias com outros presidentes.

Quem, por exemplo?
A Cristina Junqueira (cofundadora do Nubank). Houve aquele episódio no programa Roda Viva (quando ela falou da dificuldade em contratar negros e que não poderia nivelar por baixo), uma questão de interpretação, e ela me pediu ajuda. O problema não é você ter oportunidade de melhoria na fala. O problema é insistir que a fala não tem oportunidade de melhoria. Até ontem os presidentes de empresas não precisavam se empenhar em saber o que é diversidade e inclusão. Ela sabe muito bem de economia e eu posso ser a mentora da Cristina nessa diversidade. E eu incluo o Guilherme Benchimol (CEO e fundador da XP Inc.), que quer aprender muito sobre isso, gente que se interessa em como lidar com a liderança e ampliar espaços. Fábio Hering (presidente da Companhia Hering), que entende tanto do mercado fabril, pergunta sobre essa questão. Isso não tem preço. São essas pessoas que me procuram, por meio da RM Consulting, e que querem saber como fazer. Com isso, é possível criar valor e mostrar que não é só algo adicional à cultura e sim parte do negócio.

“Cheguei para contribuir com o Carrefour (após a morte de João Alberto Freitas, foto) porque o que já existia lá não foi suficiente para evitar esse tipo de violência” (Crédito:Reprodução)

Nesse sentido, o programa de trainees para negros do Magazine Luiza foi um divisor de águas?
Não foi o primeiro, mas um dos que trouxeram mais visibilidade para políticas afirmativas no Brasil. A Luiza Helena Trajano (presidente do Conselho de Administração do Magazine Luiza) tem meu apoio incondicional. Há 133 anos (em 1888, ano da abolição da escravatura) nos colocaram à margem da sorte, sem apoio, por isso são necessárias ações reparatórias. Nós temos valor, mas precisamos de oportunidades.

A pandemia afetou as contratações de mulheres nas empresas?
Sim. E quem mais saiu prejudicada foi a mulher preta. Mas a pandemia não vai durar para sempre. E a gente está se preparando para ocupar esses espaços.

Há como mudar a rota após uma grande crise, como a que ocorreu com o Carrefour após a morte do João Alberto Freitas em uma loja em Porto Alegre, em novembro passado?
É possível sim, com muita ação. A empresa reuniu negros em um comitê e nós estamos lá para trazer benefícios para a população negra. Baseado nessa violência inaceitável, precisamos entender qual o aprendizado, como trazer todos os funcionários para essa discussão sobre inclusão. Não dá para tapar o sol com a peneira. Cheguei para contribuir nesse processo, porque o que já existia lá não foi suficiente para evitar esse tipo de violência. E eles aceitaram. Isso, para mim, mostra uma empresa que quer acertar e transformar.

O que representa a posse de Kamala Harris como vice-presidente dos Estados Unidos?
Transformação. E ela vai ter um apoio fenomenal, porque já disse a que veio. Consequentemente, empodera todas as mulheres e todas as mulheres pretas. Isso é espetacular. Para mim, ela é a próxima presidente dos Estados Unidos. E eu quero estar na posse para ovacioná-la.