Foram duas semanas de trabalhos intensos em Porto Alegre. Uma equipe de 20 pesquisadores do parque tecnológico da PUC-RS foi dedicada a agilizar a adaptação da rede da adquirente Getnet para receber pagamentos do auxílio emergencial. Tudo para que, já na última sexta-feira de maio, as 1,3 milhão de maquininhas ativas da empresa ligada ao grupo Santander estivessem prontas. Um mês antes, todos os presidentes das adquirentes, entre eles Pedro Coutinho, CEO da Getnet, foram chamados para uma reunião na Caixa Econômica Federal para dizer como suas empresas poderiam ajudar a distribuir os recursos do auxílio de R$ 600 reais mensais para as pessoas mais vulneráveis economicamente, durante o impacto do isolamento social causado pela Covid-19. As filas nas agências da Caixa para sacar o benefício (apelidado de “coronavoucher”) haviam se tornado um risco para ampliar as contaminações do coronavírus.

A solução foi permitir que as maquininhas de crédito e débito, presentes em 3 milhões de estabelecimentos comerciais no Brasil, pudessem receber pagamentos do auxílio emergencial por QR Code, usando o aplicativo Caixa Tem. “Vai facilitar muito para quem recebeu esse recurso”, afirma Coutinho. “É uma oportunidade de comunicação com esses clientes ainda um tanto invisíveis. Para eles, isso traz a autoestima de se inserirem no mundo das finanças digitais.”

A funcionalidade de fazer pagamentos sem contato vinha sendo aventada como opção desde o lançamento do coronavoucher. Ela entra no ar agora que falta o pagamento de mais uma parcela, se o programa não for estendido. O objetivo de evitar que o beneficiário vá até as agências será alcançado se uma parte da população preferir acessar digitalmente os recursos disponíveis em vez de buscar o dinheiro em espécie nos caixas eletrônicos. O pagamento por QR Code tamém pode ser usado no e-commerce. “Para o comerciante, ela elimina o principal momento de risco, que é o de manusear o dinheiro”, diz Coutinho. “E, pela função débito, ele já recebe o recurso em conta um dia depois de feito o pagamento.”

Isso tudo tem o potencial de estimular também que mais pagamentos aconteçam pela funcionalidade, trazendo um novo hábito ao brasileiro. Além da Getnet, também a Cielo, controlada por Bradesco e Banco do Brasil, já entrou no programa desde o início. Entre a sexta-feira (29) e a terça-feira (2), 1,5 milhão de maquininhas aptas a ler QR Code completaram 300 mil transações. A Rede, ligada ao Itaú Unibanco, divulgou que colocaria a sua infraestrutura de aparelhos disponível “em ampla escala para a aceitação de pagamentos com aplicativo Caixa Tem” a partir da segunda-feira (8). No entanto, não revelou quantas maquininhas estariam aptas a fazer essas transações.

Para o mercado de cartões, o projeto pode significar um avanço no uso de tecnologias sem contato (o chamado contactless, segundo o jargão do mercado). A mais popular dela tem sido os pagamentos por aproximação, pela tecnologia de NFC (comunicação de campo próximo, na sigla em inglês), que está em franca expansão no País. Ela apresentou crescimento de transações de 456%, no primeiro trimestre deste ano, em comparação com o mesmo período de 2019. Com a popularização do QR Code, o Brasil pode ter duas tecnologias contactless avançando fortemente, em paralelo.

ACESSO FINANCEIRO Nenhum impacto dessa funcionalidade, no entanto, deve ser maior do que para a democratização do acesso financeiro, um processo que já vem ocorrendo nos últimos tempos, com a ajuda das fintechs que permitem criar contas e prover crédito de forma rápida e simplificada. As estatísticas levantadas com o cadastro do coronavoucher — que é dedicado a trabalhadores informais, microempreendedores individuais, autônomos e desempregados — revelaram haver entre 30 milhões e 40 milhões de brasileiros sem conta em banco. Eles seriam responsáveis por até R$ 850 milhões transacionados anualmente fora do sistema financeiro principal, segundo estima Rafael Pereira, presidente da Associação Brasileira de Crédito Digital.

A patir de agora, mais informações sobre essa massa podem ser coletadas. “De forma diferente do que acontece em outros países emergentes, aqui essas pessoas não ficam de fora por falta de infraestrutura, mas devido a custos”, diz Pereira, que também é CEO da Rebel, fintech de crédito on-line. “Quase todo brasileiro adulto tem um smartphone e está incluído no mundo da tecnologia, mas prefere não ter conta corrente. Quem recebe um coronavoucher de R$ 600 não vai querer pagar tarifas de R$ 100 mensais ou DOC e TED de R$ 10 por transação.” Mais que sacar o benefício, esses consumidores recém-digitalizados poderão entrar de vez na mira do governo, das grandes redes adquirentes, das próprias instituições financeiras donas dessa infraestrutura e também das fintechs que atuam como subadquirentes e como carteiras digitais. É uma digitalização promissora.