Em 2016, anos antes que um vírus desconhecido causasse a morte de 1 milhão de pessoas e retraísse as economias de todo o planeta, o então presidente do Banco Mundial, Jim Yong Kim, fez uma declaração em tom profético: “Em alguns anos, as indústrias europeias que estão na Ásia e Américas vão retornar aos seus países de origem”. À época, a previsão foi vista como infundada. Agora, ela volta com força nos conselhos de grandes organizações industriais, principalmente nas filiais que operam em nações emergentes. É verdade que o vírus teve um efeito devastador. Mas a ele se somam a falta de sincronia em questões ambientais e a instabilidade democrática em muitas nações. Uma combinação que pode, em breve, eliminar as vantagens de manter indústrias onde há menor segurança para a operação.

Esse processo, que já começava a se desenhar desde o início dos anos 2010, ganhou um ritmo ainda maior durante a pandemia. Segundo um recente estudo da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (Unido), a América Latina teve a maior retração industrial, chegando a perder, na média, 24%. O resultado disso, impulsionado por economias como a da Argentina, México e Colombia, foi o fechamento de mais de 10 mil empresas com o enfraquecimento, principalmente, de indústrias consideradas de uso supérfluo, como eletrônicos, brinquedos, além das indústrias de transformação e extrativista, que sentiram a queda da demanda mundial. Com dificuldades em honrar pagamentos e compromissos, mundo afora, empresas multinacionais começaram a rever suas estratégias globais, passando do pente fino, principalmente, em economias muito fragilizadas pela crise ou diante de impasses políticos graves.

Para o economista-chefe do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI), Rafael Cagnin, que foi um dos autores do estudo em parceria com a Unido, no Brasil, o principal empecilho são as condições adversas no ramo tributário e fiscal brasileiro, somado aos conflitos ambientais e políticos, fatores que tornam o País ainda menos interessante aos industriais estrangeiros. “É claro que o movimento não começou agora, mas ele pode acelerar após a pandemia”, disse.

Diante deste cenário, o resultado é o fortalecimento dos projetos de reshoring, movimento de retorno de grandes empresas para seus países de origem. Se antes o abandono de mercados onde a mão de obra é mais barata se mostrava impossível, a chegada da indústria 4.0, que automatizou processos inteiros e diminuiu consideravelmente as áreas ocupadas, tornou o retorno para a sede mais viável. Tudo isso em um momento em que a diminuição do emprego nos países do velho continente e suas economias fragilizadas exigem estímulos fiscais que tornam atraentes a volta para casa.

ALTA TECNOLOGIA Indústrias da transformação que operam com tecnologia de ponta estão no topo da lista das que podem deixar as nações emergentes. (Crédito:Divulgação)

Nesse movimento de debandada, restaria ao parque fabril brasileiro algumas poucas indústrias nacionais altamente tecnológicas e um imenso contingente de pequenos e médios industriais que vivem de fornecer peças e equipamentos para industriais de grande porte. Entre os sinais que mostram tal recuo, ele cita a perda de participação do setor no Produto interno Bruto (PIB), e a queda na participação na indústria global e na fatia que os manufaturadores representam nas exportações.

RECUPERAÇÃO Diante de uma economia colapsada e sem uma guerra que reduza consideravelmente o número de trabalhadores, os países europeus precisam repatriar seus empregos, principalmente os que envolvem alta tecnologia e inovação. Evidentemente, como destaca o professor de história econômica da América Latina na Universidade de São Paulo (USP), Carlos Roberto Campos, alguns fatores ainda tornam o Brasil competitivo, como o custo da mão de obra quando comparada à Europa. “Além disso, com o dólar alto, o Brasil se torna um exportador importante, o que dificulta a saída de empresas que ganham com venda em escala”, afirmou. Para Campos, o êxodo ficaria mais concentrado em empresas que possuem produtos de maior valor agregado, como carros e eletrônicos de luxo. Na semana passada, a montadora alemã Audi anunciou a possibilidade de desativar sua fábrica no Paraná (leia reportagem à página 42). Antes, a japonesa Sony comunicou que em 2021 encerrará a produção na Zona Franca de Manaus. “Empresas de alta tecnologia, como medicamentos e químicos, também tendem a migrar com mais facilidade”.

Segundo dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a indústria brasileira não está entre as que mais encolheram durante a pandemia, ficando, inclusive, à frente da média europeia (veja no infográfico). O problema, na avaliação de Campos, é que a indústria nacional já vinha de um ciclo longo de crise, e o amortecimento aparente da queda se deu, apenas, pela injeção de dinheiro com o auxílio emergencial. A Pesquisa Industrial Mensal (PIM-PF) do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), reportou que só quatro dos 25 segmentos acompanhados entre janeiro e julho tiveram alta na produção sobre um ano antes. Três estão diretamente ligados ao consumo básico: produtos alimentícios (4,9%), produtos de limpeza (4,1%) e produtos farmacêuticos (1,9%). Sem conseguir vislumbrar grandes avanços na indústria em um futuro próximo, o maior risco para o Brasil, em meio a essa reorganização mundial dos parques fabris, é ver seu papel na economia global permanecer restrito ao de fornecedor de comodities como grãos e minério de ferro.