Todo mundo sabia que o Brasil passaria por alguma turbulência durante a eleição presidencial, mas o que ocorreu na semana passada ultrapassou o limite do bom senso. Uma infeliz combinação de insanidade de mercado e leviandade política levou o País à beira do colapso nervoso e do esfacelamento das contas públicas. Movido a declarações bombásticas e a percepções não mais que superficiais, o risco Brasil tornou-se, de
um momento para o outro, o terceiro mais alto do planeta. Por algumas horas da terça-feira 11 foi impossível para o governo rolar os títulos da dívida interna, porque não havia compradores. O dólar, esse termômetro das economias periféricas, chegou na quarta-feira 12 às alturas febris de R$ 2,80. Nada, rigorosamente nada, havia se alterado nos chamados fundamentos da economia, mas ainda assim o País parecia em frangalhos, arrastado para uma situação que o mundo econômico aprendeu a chamar de argentinização. O quadro era tão espantoso que se tinha a impressão de uma conspiração para quebrar o Brasil ? risco que só foi afastado na manhã de quinta-feira 13, quando o governo arregaçou as mangas e veio a público anunciar um amplo e caro pacote defensivo. Ele incluiu medidas adicionais de ajuste fiscal no valor de R$ 3,2 bilhões e
um aporte de US$ 10 bilhões do Fundo Monetário Internacional. O País respirou aliviado. A um preço elevado, a economia brasileira havia saltado o surto de insanidade.

Quem quiser entender as origens mais imediatas desse mergulho
na irracionalidade deve começar pelo sábado 8, quando foi publicada uma bombástica entrevista de George Soros, o superespeculador convertido em arauto da globalização benigna. Ele garantiu, com base sabe-se lá no quê, que o mercado financeiro americano já havia ungido José Serra e que a eventual eleição de Lula arrastaria
o Brasil ao caos. ?Brasileiro não vota?, resumiu ele, numa palestra
do Council of Foreign Relations, em Nova York. No final da semana passada, Soros lamentou a divulgação de suas idéias mas não voltou atrás no conteúdo das declarações. Nem precisaria. De várias formas e em diversos idiomas sua mensagem antibrasileira já era repetida dentro e fora do País. ?Acho que o Brasil tem 70% de chance de ser forçado a renegociar sua dívida, qualquer que seja o presidente?, profetizou, no domingo 9, o economista americano Morris Goldstein, ex-funcionário do FMI. Sua tese é de que a dívida pública atingiu tais proporções que o calote é praticamente inevitável. Diante de tamanha sinistrose, não é de espantar que tenha havido corrida ao dólar, remessas de ativos para o exterior e elevação a níveis inéditos do risco Brasil. O mercado simplesmente comprou a idéia de que o país caminha para a bancarrota, pondo a favor dessa estupidez a sua inquestionável vocação para fazer cumprir as próprias profecias. Com um olho no lucro imediato da especulação e outro no seu interesse de longo prazo em manter o atual modelo econômico brasileiro, o mundo financeiro passou a vocalizar exigências. ?Espero que a meta de inflação e o superávit primário permaneçam com qualquer candidato?, disse John Taylor, subsecretário do Tesouro dos EUA. Em resposta a essa pressão organizada, não houve dentro do País vozes capazes de opor-se claramente aos especuladores e vendilhões do apocalipse. Pelo contrário.

Protagonistas erraram. A crise da semana passada vinha sendo desenhada há várias semanas pelos protagonistas do debate eleitoral brasileiro. De um lado, as autoridades do governo repetiam, sob orientação dos marqueteiros do PSDB, que os candidatos de oposição não contam com a confiança dos mercados e vão conduzir o Brasil ao caos da Argentina. Como Lula mantém-se no patamar de 40% das intenções de voto, tem sido fácil para o partido do governo acenar com os espantalhos da moratória e da balbúrdia. ?O fato de se associar Serra à possibilidade de manter o Brasil no rumo ajuda muito?, diz José Aníbal, presidente nacional dos tucanos. Do outro lado, os candidatos da oposição se esforçam em demonstrar que a herança deixada pelo governo é desastrosa, capaz de suscitar nos mercados as desconfianças manifestadas na semana passada. ?Fechando as próprias mentes e bloqueando a discussão (o governo e seus prepostos) prepararam a reestruturação da dívida na marra e na desordem?, escreveu, na semana passada, o filósofo Mangabeira Unger, um dos mentores intelectuais de Ciro Gomes. Ou seja: cada um dos lados atira o ônus da crise no colo do outro, e ninguém está gastando muita energia em explicar que o Brasil é um país viável, economicamente organizado, e que as suas contas podem, sim, ser postas em ordem pelo próximo presidente. O interesse eleitoral determinou que se lançassem nas ruas os quatro cavalos do apocalipse. Quando eles se soltaram das rédeas e saíram em disparada, na semana passada, o governo foi obrigado a chamar o FMI. A demência havia tomado conta.

Camelôs do apocalipse
As vozes e interesses que alimentam a crise financeira
Biô Barreira? Roberto Mangabeira: ?O governo e seus prepostos, sem dinheiro e sem idéias, trabalham, bem-intencionados, pelo calote e pela argentinização do Brasil?
Manoel Marques? José Aníbal: ?Associar Serra
à possibilidade
de o Brasil manter o rumo ajuda muito na definição do
voto favorável ao senador?
Bloomberg ? John Taylor: ?Estamos observando de perto o Brasil, assim como fizemos com a Argentina, e o
novo governo só vai funcionar se for igual ao de FHC?