Quando subiu ao palco da casa de shows Tom Brasil, em São Paulo, para receber o prêmio de Brasileiro do Ano na Cultura, em 2019, conferido pela revista IstoÉ, o humorista, apresentador e escritor Jô Soares estava numa cadeira de rodas. Com o bom humor que lhe é peculiar, não se abalou pela situação e comparou sua condição à do Brasil. “Estou aqui representando a cultura brasileira. Estou de cadeira de rodas, mas ela está bem pior do que eu. Nossa cultura está na UTI”, disse. A comparação de Jô tem se mostrado mais apropriada a cada dia. Com um governo que despreza a cultura, o Brasil vê com tristeza seu rico patrimônio definhar, sem uma política que garanta minimamente a viabilidade de um setor da maior importância para qualquer nação. O prognóstico é dramático. Também na UTI está a Livraria Cultura, fundada em por Eva Herz em 1947, na capital paulista. Em Recuperação Judicial após acumular dívidas estimadas em R$ 285,4 milhões, a rede corre o risco de ter a falência decretada a qualquer momento.

Um aditivo ao plano de recuperação apresentado pela Cultura em setembro como forma de mitigar os efeitos da pandemia foi rejeitado por um grupo de credores. Uma liminar concedida em favor da livraria suspendeu temporariamente a decretação da falência. Agora, um novo pedido de falência foi endereçado à Justiça pela Editora Globo. A empresa afirma que a Cultura não honrou compromissos de cerca de R$ 544 mil contraídos após a Recuperação Judicial. A decisão final caberá ao juiz Marcelo Sacramone. Para o CEO da X Infinity Invest, Fábio de Aguiar, que comanda a maior empresa de reestruturação do Brasil, o grande erro da Livraria Cultura foi a falta de planejamento. “A apresentação inicial de um deságio menor do que o necessário resulta na necessidade de um aditivo, com um deságio mais alto, mas danifica a imagem da empresa”, disse.

CONVÍVIO Por décadas, a principal loja da rede, no Conjunto Nacional, em São Paulo, exerceu sobre os amantes dos livros um encanto único. A experiência começava já nas vitrines externas, onde obras-primas da literatura alternavam-se a edições luxuosas de livros de moda, design, gastronomia, arquitetura, fotografia e outros tantos temas. Nas prateleiras que se estendem a perder de vista, o acervo primava por oferecer quase tudo o que é possível comprar para ler. Se um determinado livro não estava no estoque, o atendente anotava o pedido para encaminhá-lo à respectiva editora ou até fazer a importação direta. Algo incomum no Brasil. Até o cafezinho, ponto de encontro de leitores, autores e intelectuais, se destacava pelo ambiente convidativo a longas conversas. Isso sem contar o auditório, palco de récitas, declamações, bate-papos com autores, workshops.

SERGIO HERZ Depois da rejeição dos credores ao novo plano de recuperação judicial, o CEO da rede de livrarias pode ficar sem saída. (Crédito:Regis Filho)

Poucos endereços no mundo devem ter recebido tantos fãs de Harry Potter, vestidos a caráter, para aguardar a chegada de mais um volume da série. Eles lotavam os corredores e sentavam-se nas rampas e escadarias como se estivessem em Hogwarts, a escola de bruxaria descrita pela autora J.K. Rowling. Esse modelo negócio, que atraía leitores não só para comprar livros mas para conviver, parecia ter tudo para resistir à popularização do e-commerce. Não foi isso que ocorreu. Em 2017, a Livraria Cultura assumiu, na totalidade, o controle da Fnac Brasil, rede de origem francesa que também estava perdendo dinheiro por aqui. A transação, que custou 36 milhões de euros, incluiu 12 lojas físicas e o site brasileiro da Fnac. No mesmo ano, a Cultura comprou a plataforma de marketplace Estante Virtual, uma espécie de sebo on-line com 4 milhões de clientes cadastrados e 17,5 milhões de livros vendidos anualmente. O valor da transação não foi informado, mas foi justificado como uma estratégia de expansão da empresa. Ocorreu o contrário. Em 2018, apenas 15 meses após a aquisição, a Cultura anunciou o fechamento de todas as lojas da Fnac, incluindo o canal digital. Pouco depois, em outubro, iniciou o pedido de Recuperação Judicial. O plano homologado na 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo prevê o pagamento das dívidas estimadas em R$ 285,4 milhões ao longo de até 14 anos.

A Cultura afirma ter realizado o pagamento de mais de R$ 10 milhões a todos os credores concursais até o primeiro trimestre deste ano. Segundo a empresa, foram quitados 73% das dívidas trabalhistas, 100% dos valor devido a pequenos credores (até R$ 2 mil), e mais de R$ 5 milhões junto a outros credores. Em janeiro, a plataforma Estante Virtual foi vendida para o Magazine Luiza por R$ 31 milhões. O valor, segundo o plano de Recuperação Judicial, foi investido em aquisição de estoque. Com a pandemia, a rede foi obrigada a fechar todas as lojas. Apenas em março, a receita bruta caiu 73% na comparação com o mesmo mês de 2019. Daí a necessidade de ajustar o plano de Recuperação Judicial – o que foi rejeitado pelos credores. O atual CEO da Livraria Cultura, Sergio Herz, afirmou ao site PublishNews que irá recorrer, caso a Justiça decrete a falência.