Nessa disputa, não há santo. Nem beneméritos. Na discussão mundial em torno da quebra de patentes da vacina da Covid-19, há, de um lado, elementos envolvidos como ideologia, interesses políticos e econômicos. Do outro, boa parte da população que ainda aguarda a oportunidade de esticar o braço para receber o imunizante. E é justamente em diminuir a escassez da escala global de vacinas para conseguir, de fato, frear os casos de contaminação no mundo que tem trazido o debate em torno do assunto. Os números mostram um pouco da complexidade da discussão e do que envolve abrir mão da patente: somente no primeiro trimestre deste ano a gigante farmacêutica Pfizer registrou receita de US$ 3,5 bilhões com a venda global do imunizante. Não é desprezível. Representa 24% dos US$ 14,6 bilhões do faturamento nos primeiros três meses de 2021.

Com esse contexto, é possível analisar a cruzada da farmacêutica contra a iniciativa. Em artigo publicado em sua página no LinkedIn, o CEO global da gigante farmacêutica americana Albert Bourla explica as razões de a empresa iniciar essa cruzada contra a quebra da patente da vacina. E começou o texto com uma provocação: “Será que a renúncia proposta vai trazer soluções ou criar mais problemas?”. O executivo disse, no documento, que o objetivo é garantir a entrega de 3 bilhões de doses até o fim do ano. “Estas doses não são para ricos ou pobres e sim para todos. Celebramos acordos para fornecer a 116 países e estamos em negociações avançadas com outros”, disse Bourla. Para ele, a liberação do registro pode afetar diretamente a cadeia de fornecimento e distribuição de insumos no mundo.

EM ROTA DE COLISÃO O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, que foi imunizado com vacina da Pfizer em janeiro, quer o fim da patente para garantir mais doses a países em desenvolvimento. (Crédito:ALEX WONG)

O principal defensor da tese de derrubada da patente tem sido o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, que, de fato, reverteu a curva de contaminação e acelerou a vacinação. Segundo a plataforma Our World in Data, os Estados Unidos já aplicaram 264 milhões de doses. No Brasil, foram aplicadas 49 milhões. O governo do democrata, imunizado com a vacina da Pfizer antes de tomar posse, em janeiro, agora tem liberado a aplicação em turistas e defendido a quebra da patente junto à Organização Mundial do Comércio (OMC).

Nessa discussão, o governo brasileiro mostra uma certa esquizofrenia sobre o assunto. Ainda durante o governo de Donald Trump, Jair Bolsonaro mostrava aliança irrestrita com o pensamento do aliado. Agora diz ser favorável à discussão pela quebra da patente. A mudança de rumo no discurso, no entanto, vem após a gestão federal ignorar por um bom tempo a oferta da Pfizer para compra do imunizante, no ano passado. E, principalmente, em reduzir verbas para a área de pesquisa, afetando, inclusive, testes de imunizantes desenvolvidos no País.

DEMORA INEXPLICÁVEL Após ignorar ofícios da Pfizer no ano passado, oferecendo doses da vacina, somente em março Jair Bolsonaro fechou contrato com a farmacêutica. Carlos Murillo, CEO da América Latina e que fechou o contrato, confirmou a demora durante a CPI do Senado. (Crédito:Marcos Correa)

Para Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde da gestão de Bolsonaro, antes da discussão sobre quebra de patente seria necessário pautar debate sobre a ampliação do ritmo de produção. “Patente é a regra e quebrar a regra por conveniência é sempre muito preocupante. E as conse-quências a médio prazo podem não ser boas”, afirmou. O correto, na avaliação dele, seria estimular que outras plantas industriais produzissem as vacinas, como colaboração, incluindo fábricas de farmacêuticas no Brasil, mas sem deixar de proteger a invenção dos laboratários. O ex-ministro diz que a gestão de Bolsonaro mostra, mais uma vez, a falta de liderança no cenário geopolítico. “O governo federal anda conforme os Estados Unidos falam. Primeiro era um alinhamento automático a Donald Trump, que foi um erro enorme, e agora foi pego com essa decisão de Joe Biden, que parece muito mais uma decisão de forçar a negociação do que quebra de patente”, afirmou Mandetta.

Divulgação

“A canetada não vai garantir uma ampola a mais de vacina contra a Covid-19. É um ato demagógico. Precisa haver negociação e não imposição” Nelson Mussolini Presidente do Sindusfarma.

Na quinta-feira (13), o próprio CEO da Pfizer na América Latina, Carlos Murillo, que até o fim do ano passado comandava a operação da farmacêutica no Brasil, confirmou à CPI do Senado que investiga as ações do governo federal no combate à pandemia que ofereceu 70 milhões de doses e que, em setembro, cobrou um posicionamento da administração Bolsonaro. Somente em março o governo fechou acordo com a farmacêutica para distribuição de 100 milhões de doses. Na segunda-feira (1), foi assinado novo acordo para mais 100 milhões. Mas as entregas têm sido a conta-gotas. Na quinta-feira (13), o Brasil recebeu lote com 628 mil doses.

EVARISTO SA

“O governo federal anda conforme os Estados Unidos falam. Primeiro era alinhamento automático a Trump e agora foi pego com a decisão de Joe Biden” Luiz Henrique Mandetta ex-ministro da saúde.

O presidente-executivo do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma), Nelson Mussolini, disse que a entidade é favorável ao cumprimento da lei de propriedade intelectual e que isso garante segurança jurídica e investimentos em inovação. “A canetada não vai garantir uma ampola a mais de vacina. É um ato demagógico.” Para ele, a discussão sobre capacidade produtiva deveria estar na pauta. “Precisa haver negociação e não imposição. É enganar a população dizer que quebrar patente resolve o problema.”

Reginaldo Arcuri, presidente do Grupo FarmaBrasil, entende que é falsa a dicotomia entre o lucro das farmacêuticas e a chegada das doses à população. “Temos a necessidade um volume maior de vacinas, mas suspender a garantia da patente não é a saída. Precisa de fábrica e de tecnologia e isso não é rápido.” Fato é que, enquanto isso, o Brasil segue sofrendo com falta de vacina, ausência de gestão no combate à pandemia e hospitais ainda cheios. E na espera sem fim pela chegada do avião com algumas poucas doses.