14/05/2021 - 11:00
Nessa disputa, não há santo. Nem beneméritos. Na discussão mundial em torno da quebra de patentes da vacina da Covid-19, há, de um lado, elementos envolvidos como ideologia, interesses políticos e econômicos. Do outro, boa parte da população que ainda aguarda a oportunidade de esticar o braço para receber o imunizante. E é justamente em diminuir a escassez da escala global de vacinas para conseguir, de fato, frear os casos de contaminação no mundo que tem trazido o debate em torno do assunto. Os números mostram um pouco da complexidade da discussão e do que envolve abrir mão da patente: somente no primeiro trimestre deste ano a gigante farmacêutica Pfizer registrou receita de US$ 3,5 bilhões com a venda global do imunizante. Não é desprezível. Representa 24% dos US$ 14,6 bilhões do faturamento nos primeiros três meses de 2021.
Com esse contexto, é possível analisar a cruzada da farmacêutica contra a iniciativa. Em artigo publicado em sua página no LinkedIn, o CEO global da gigante farmacêutica americana Albert Bourla explica as razões de a empresa iniciar essa cruzada contra a quebra da patente da vacina. E começou o texto com uma provocação: “Será que a renúncia proposta vai trazer soluções ou criar mais problemas?”. O executivo disse, no documento, que o objetivo é garantir a entrega de 3 bilhões de doses até o fim do ano. “Estas doses não são para ricos ou pobres e sim para todos. Celebramos acordos para fornecer a 116 países e estamos em negociações avançadas com outros”, disse Bourla. Para ele, a liberação do registro pode afetar diretamente a cadeia de fornecimento e distribuição de insumos no mundo.
O principal defensor da tese de derrubada da patente tem sido o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, que, de fato, reverteu a curva de contaminação e acelerou a vacinação. Segundo a plataforma Our World in Data, os Estados Unidos já aplicaram 264 milhões de doses. No Brasil, foram aplicadas 49 milhões. O governo do democrata, imunizado com a vacina da Pfizer antes de tomar posse, em janeiro, agora tem liberado a aplicação em turistas e defendido a quebra da patente junto à Organização Mundial do Comércio (OMC).
Nessa discussão, o governo brasileiro mostra uma certa esquizofrenia sobre o assunto. Ainda durante o governo de Donald Trump, Jair Bolsonaro mostrava aliança irrestrita com o pensamento do aliado. Agora diz ser favorável à discussão pela quebra da patente. A mudança de rumo no discurso, no entanto, vem após a gestão federal ignorar por um bom tempo a oferta da Pfizer para compra do imunizante, no ano passado. E, principalmente, em reduzir verbas para a área de pesquisa, afetando, inclusive, testes de imunizantes desenvolvidos no País.
Para Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde da gestão de Bolsonaro, antes da discussão sobre quebra de patente seria necessário pautar debate sobre a ampliação do ritmo de produção. “Patente é a regra e quebrar a regra por conveniência é sempre muito preocupante. E as conse-quências a médio prazo podem não ser boas”, afirmou. O correto, na avaliação dele, seria estimular que outras plantas industriais produzissem as vacinas, como colaboração, incluindo fábricas de farmacêuticas no Brasil, mas sem deixar de proteger a invenção dos laboratários. O ex-ministro diz que a gestão de Bolsonaro mostra, mais uma vez, a falta de liderança no cenário geopolítico. “O governo federal anda conforme os Estados Unidos falam. Primeiro era um alinhamento automático a Donald Trump, que foi um erro enorme, e agora foi pego com essa decisão de Joe Biden, que parece muito mais uma decisão de forçar a negociação do que quebra de patente”, afirmou Mandetta.
“A canetada não vai garantir uma ampola a mais de vacina contra a Covid-19. É um ato demagógico. Precisa haver negociação e não imposição” Nelson Mussolini Presidente do Sindusfarma.
Na quinta-feira (13), o próprio CEO da Pfizer na América Latina, Carlos Murillo, que até o fim do ano passado comandava a operação da farmacêutica no Brasil, confirmou à CPI do Senado que investiga as ações do governo federal no combate à pandemia que ofereceu 70 milhões de doses e que, em setembro, cobrou um posicionamento da administração Bolsonaro. Somente em março o governo fechou acordo com a farmacêutica para distribuição de 100 milhões de doses. Na segunda-feira (1), foi assinado novo acordo para mais 100 milhões. Mas as entregas têm sido a conta-gotas. Na quinta-feira (13), o Brasil recebeu lote com 628 mil doses.
“O governo federal anda conforme os Estados Unidos falam. Primeiro era alinhamento automático a Trump e agora foi pego com a decisão de Joe Biden” Luiz Henrique Mandetta ex-ministro da saúde.
O presidente-executivo do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma), Nelson Mussolini, disse que a entidade é favorável ao cumprimento da lei de propriedade intelectual e que isso garante segurança jurídica e investimentos em inovação. “A canetada não vai garantir uma ampola a mais de vacina. É um ato demagógico.” Para ele, a discussão sobre capacidade produtiva deveria estar na pauta. “Precisa haver negociação e não imposição. É enganar a população dizer que quebrar patente resolve o problema.”
Reginaldo Arcuri, presidente do Grupo FarmaBrasil, entende que é falsa a dicotomia entre o lucro das farmacêuticas e a chegada das doses à população. “Temos a necessidade um volume maior de vacinas, mas suspender a garantia da patente não é a saída. Precisa de fábrica e de tecnologia e isso não é rápido.” Fato é que, enquanto isso, o Brasil segue sofrendo com falta de vacina, ausência de gestão no combate à pandemia e hospitais ainda cheios. E na espera sem fim pela chegada do avião com algumas poucas doses.