R$ 800 bilhões. Esse é o valor que o governo federal pretende usar para atacar a pandemia do novo coronavírus e tentar reverter parte dos estragos econômicos já causados pela doença. Com a maior parte do dinheiro vindo de exonerações fiscais e transferência de recursos, restam ainda muitas dúvidas sobre como executar tais medidas em um país de dimensão continental como o Brasil. E, como se toda essa incerteza não bastasse, há ainda o “fator Bolsonaro”, expressão usada em Brasília e no mercado para definir o estrago que o presidente pode fazer diante das dificuldades que se avizinham. Isolado politicamente, Jair Bolsonaro enfrenta agora a sua mais grave crise política desde o início do mandato e tem deixado em saia justa até seus ministros mais conceituados, como Paulo Guedes (Economia) e Luiz Henrique Mandetta (Saúde).

Na última semana, uma série de medidas anunciadas pelo ministério da Economia deram o tom do enfrentamento aos impactos da Covid-19. E, ainda que a questão do isolamento social coloquem em lados opostos o presidente e ministros como Guedes, Mandetta e Sérgio Moro (Justiça), as atitudes ligadas ao suporte econômico levantam dúvidas. Exemplo são os R$ 200 bilhões de redução de compulsórios. “Como não há obrigatoriedade dos bancos privados aplicarem os recursos que serão liberados, é impossível saber se serão efetivos”, afirma José Cardoso Feitosa, economista e ex-secretário do Tesouro de São Paulo. Com relação ao Auxílio-Emergencial, que passou de R$ 200 para até R$ 1,2 mil por família, o problema é prático: “Como chegar às pessoas que não estão no Cadastro Único?” questiona Bruno Carazza, economista e autor do livro “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”. Pairam também incertezas sobre como o Tesouro vai garantir empréstimos para as PMEs em caso de inadimplência.

Suamy Beydoun / Pedro Ladeira

 

PRÓXIMAS MEDIDAS Também foi aprovado no Senado, na quarta-feira 1, o projeto que permite o Estado bancar até três salários mínimos (R$ 3,1 mil) do rendimento dos trabalhadores CLT. A medida custará cerca de R$ 50 bilhões e as empresas não poderão demitir o trabalhador por um ano. A proposta, agora, vai para a Câmara. “Se a empresa reduzir 20% ou 30% do salário, numa suspensão de contrato em livre negociação, nós vamos complementar”, disse Guedes, em teleconferência da XP Investimentos. Conhecido por ser liberal, o ministro se diz confortável em tornar o Estado o garantidor do bem-estar social. “Fazer transferência de renda para os mais frágeis, em um momento como esse é obrigação.” Com as ajudas, o governo deve destinar 6% do PIB ao combate, o que deve ser insuficiente para evitar uma recessão mas, ainda assim, Guedes diz que a retomada será rápida em 2021. Para isso, no entanto, o economista e professor da USP, Carlos Conti, afirma ser necessário uma queda mais acentuadas na Selic. “Precisamos virar o ano com o juro perto de zero”. Nesse sentido, algumas medidas do governo já deixam o juro em torno de 0,8%, como as do Banco do Brasil e Caixa que atendem PMEs e crédito consignado, respectivamente.

CONTATO DIRETO: Contrariando as recomendações de agentes da saúde, Bolsonaro fura o isolamento social e visita comerciantes em Brasília. (Crédito:Fábio Pupo/Ricardo Borges)

Com boa parte das medidas dependendo de aprovação do Legislativo, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, critica a lentidão do Executivo em enviar as propostas. “Se o governo não tem apoio no Parlamento, as medidas de enfrentamento da crise têm.” Ele afirmou que o governo não pode jogar todo o peso das aprovações ao Congresso. “O ideal é trabalhar em conjunto.” Perguntado sobre taxar grandes fortunas e lucros e dividendos, Maia diz não ser o foco. “Não é hora de pensar em como financiar as medidas. Quem financia é o Estado. O Brasil terá recessão e todos vão se adequar, setor público e privado.” Enquanto isso, empresários seguem apreensivos. Um alto executivo de uma das maiores empresas de infraestrutura do País, informou à DINHEIRO que o maior problema é o fator Bolsonaro. “Já provisionamos o vírus, mas é impossível provisionar como agirá o presidente.”

Entrevista
Armínio Fraga ex-presidente do Banco Central e fundador da Gávea Investimentos

Ricardo Borges

“Há um desafio muito grande de desenho e execucão das propostas”

Como lidar com um momento com condições tão inéditas?
Existe muita incerteza. Dá medo. Temos de nos cuidar. Sempre trabalhei muito, mas agora estou trabalhando ainda mais.

Em artigo conjunto com Vinicius Carrasco e José Alexandre Scheinkman, economistas e sócios da Stone, você propôs uma linha emergencial de crédito de R$ 120 bilhões para as pequenas e médias empresas. O governo fala de linha do Banco Central de R$ 40 bilhões para financiar folha de pagamentos. É pouco?
A nossa conta foi feita em cima do estoque total de crédito para pequenas e médias, que é de aproximadamente R$ 500 bilhões. Mas há ainda uma grande diferença entre maiores e menores deste grupo. O governo desenhou uma resposta com empresas que faturam mais de R$ 30 mil por mês. Mas existe muita empresa menor que vai ficar de fora, mas não chega a ser individual, que no caso poderia entrar na proposta de ajuda de R$ 600 reais. Há um desafio muito grande de desenho e execução das propostas.

Como fazer esses repasses?
O Banco Central está estudando no detalhe. No nosso artigo, sugerimos usar a Caixa, que poderia ser capitalizada pelo Tesouro e correr muito mais risco do que os bancos, que nem podem, nem devem assumir tanto risco. É uma crise de sistema de pagamentos que a Caixa pode atacar com dinheiro público. A maioria d empresas vinha com saúde até a crise. A elas cabe oferecer uma linha com juro baixinho e ela seria paga à medida que a receita voltasse. É muito provável que se perca dinheiro nesses empréstimos. Mas é completamente diferente de empresa que quebrou por fraude. Cabe solidariedade social nisso. Salvaria empregos e boas empresas.

Também se fala de usar meios de pagamento para chegar a essas empresas que precisam de fluxo de caixa. Isso funcionaria?
Logo depois que escrevemos o artigo, ficou claro que um mecanismo usando o cartão de crédito funcionaria. Mesmo o informal usa muito o cartão pré-pago. A proposta está no forno e seria uma espécie de empréstimo consignado para a empresa, porque o pagamento seria feito no fluxo de receita da empresa. Com capital público, para atingir um objetivo social.

Qual é a urgência das medidas econômicas?
Precisam entrar em funcionamento o quanto antes. O setor informal é muito grande. Muita gente come com o dinheiro que ganha no dia. Estamos aprendendo muita coisa nessa crise. Outra delas é a importância do SUS. Como é bom o governo ter um sistema de saúde de alta capilaridade. Poderia ter mais, mas assim mesmo ele traz condições de ajudar muito, e deve ser reforçado depois disso. A terceira lição diz respeito à desigualdade de renda. A pobreza no Brasil diminui muito, mas as pessoas continuam em situações muito frágeis. Tudo isso já se sabia, mas infelizmente estamos enxergando isso por uma lente de aumento radical.

O governo demonstrou uma demora muito grande em perceber o tamanho da crise. As últimas declarações do ministro Paulo Guedes indicam que a realidade se impôs?
Em sua fala na live da XP no fim de semana passado, o ministro deixou muito claro que mais ações serão tomadas. Foi um movimento importante. Algumas medidas foram tomadas como o adiantamento do décimo terceiro salário. São boas, mas não resolvem tudo. Para as empresas não resolve, mas ajuda pela demanda. Sabemos que os recursos não são infinitos e tem de existir uma priorização, mas, neste momento, o erro tem de ser na linha de mais ajuda do que menos.

Há estimativas de que a dívida pública pode chegar a 90% do PIB depois da crise. Isso seria um problema?
Não é um problema se ficar claro que o déficit é temporário. Quando se introduz um gasto novo permanente de 2% ao ano, em 10 anos chega a 20 pontos a mais de déficit. Mas, se fizer um gasto temporário de 5% do PIB, a dívida cresce, mas pode ser amortizada em 10 ou 20 anos. Depois, se existe a consciência fiscal, e alguma há aqui, podemos dar conta.. Se as reformas andarem depois de feita gestão emergencial da crise, tanto melhor. Por exemplo, a administrativa e a do imposto de renda ajudaria muito a acalmar as expectativas e assim na resposta a essa crise gigante e inusitada.

Quais são os pontos mais críticos no momento?
Na área médica, isolamento social, testagem maciça, mais equipamento. Na economia, torço para que o governo consiga executar logo as propostas de preservação do emprego e de uma qualidade mínima de vida para todos, especialmente os informais. Estados e municípios também fazerm o máximo possível para se aparelhar melhor, e precisam cuidar da saúde dos médicos, que são uns heróis. É incrivel o que eles estão fazendo, colocando as próprias vidas em risco.

E parece que a economia só poderá voltar a certa normalidade se houver testes em massa, não? Não existe essa dicotomia entre preservar a saúde e a economia?
Pena que não foi possível no Brasil fazermos muitos testes já no início da pandemia. Algum isolamento social vai ficar para sempre, assim como alguns hábitos saudáveis, como lavar as mãos constantemente e não tocar o rosto. Mas, para sairmos do isolamento social mais radical, será preciso cumprirmos algumas condições, e testar bastante é uma delas. Não vai ser igual ao que era. Isso é um trauma, e vai gerar mudanças de hábitos. Mas há chance de chegarmos a um mundo melhor. No momento, o importante é sobreviver e cuidar da saúde das pessoas, além de engajar o governo a sustentar minimamente a economia.

O BRASIL CONTRA O MUNDO

No enfrentamento da questão de saúde, o Brasil, por meio do presidente Jair Bolsonaro, causa espanto à comunidade internacional. Ele chegou a declarar que brasileiros “saem pulando em esgoto e não acontece nada”, então, por esse raciocínio, a Covid-19 não seria um problema para o sistema imunológico da população. Seguidas afirmações desse tipo, pedindo que as pessoas fora do grupo de risco deixem o isolamento para a economia não parar, contrariam as recomendações do próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e só encontram eco em poucos líderes do mundo. Postura similar é a do presidente de Belarus, Alexander Lukashenko, que manteve abertos estádios e declarou que vodka e saúna podem eliminar o novo coronavírus.

Entre os chefes de Estado de grandes países e das maiores economias, Bolsonaro está sozinho. O presidente do México, o esquerdista Andrés Manuel López Obrador, após ser comparado ao brasileiro, recuou no incentivo de as pessoas seguirem vida normal. Ele pediu em 26 de março que os mexicanos fiquem em casa. Foi a mesma mudança de discurso de Donald Trump, presidente americano, e de Boris Johnson, primeiro-ministro britânico. Antes de receberem estudos do impacto no sistema de saúde da “quarentena vertical”, defendiam priorizar a economia. Outro chefe de estado, o indiano Narendra Modi, também foi da postura de dizer que a Índia não pode parar à imposição da maior quarentena da história do mundo, com 1,3 bilhão de pessoas.

O que Bolsonaro e outros líderes demoram a entender é que, segundo economistas e cientistas vêm afirmando, quem não parar nos estágios iniciais do avanço da pandemia em sua região vai precisar fazer isso depois, mas de uma forma mais radical e com maiores prejuízos à vida e à economia. Isso é algo que o novo coronavírus impõe dada a sua capacidade de contágio e de impacto no organismo de boa parte dos contaminados.

Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central e fundador da Gávea Investimentos, é um dos que alertam para isso. Em linha com as recomendações da OMS, ele defende as medidas de isolamentoe que a consequente queda da atividade precisa ser tratada com programas governamentais vigorosos. “No momento, o importante é sobreviver e cuidar da saúde das pessoas, além de engajar o governo a sustentar minimamente a economia”, afirmou à DINHEIRO (leia entrevista no quadro em destaque). “Sabemos que os recursos não são infinitos. Mas, neste momento, o erro tem de ser para mais ajuda do que para menos”.

SEM RELAXAR: Quinto país com o maior número de casos do novo coronavírus, a Alemanha elevou na última semana a restrição de circulação de pessoas. A chanceler Angela Merkel garantiu que é cedo para relaxar as medidas e tradicionais pontos turísticos, como o Portão de Brandemburgo (foto), deverão continuar vazios por algum tempo. (Crédito:Divulgação)

O Brasil prevê ajuda em torno de 6% do PIB, enquanto economias poderosas como os EUA e Reino Unido anunciam pacotes de US$ 2 trilhões e de 50% do PIB, respectivamente. Mesmo alguns emergentes, como Polônia, Colômbia, Filipinas e África do Sul, já compram títulos de dívida do próprio governo e do setor privado no mercado secundário. O Banco Central brasileiro só poderá fazer algo similar se for aprovada uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que dará a ele tais direito.

Se na área econômica as medidas parecem ainda um tanto tímidas e atrasadas em relação ao resto do mundo, a defasagem da postura do governo federal na saúde é ainda maior. Seria até injusto comparar o Brasil a nações que responderam imediatamente com isolamento, com testes em massa e que já conseguiram começar a liberar mais pessoas para voltar a circular. São casos de Coreia do Sul, Cingapura, Hong Kong, Taiwan, Austrália, Alemanha e até a Eslovênia. A maioria deles produz os testes domesticamente e já estão mais preparados para pandemias, por terem enfrentado a Sars, a H1N1 ou a Mers neste milênio. No Brasil, a falta de coordenação nas medidas eleva o risco de um colapso da saúde como o experimentado pela Itália e pela Espanha. Para o patologista Paulo Saldiva, da Faculdade de Medicina da USP e responsável pelas autópsias de pacientes da Covid-19 no Hospital das Clínicas, o Brasil não está apresentando um consenso e está todo mundo brigando, quando deveria haver união. “Tirando a China, na sua plenitude autoritária, ninguém está realmente preparado para esta epidemia”, afirma.

“Estamos vivendo um experimento observacional em que somos os próprios seres de experimentação e no qual não temos controles dos parâmetros.” Aqui também veremos pela primeira vez na história das pandemias virais como ela pode se comportar dentro de grandes favelas. “Ninguém sabe como será, e nelas o isolamento vertical é impossível, com diversas pessoas vivendo no mesmo cômodo”, diz. Com esse cenário único, nenhum país do mundo pode indicar o que realmente acontecerá por aqui.

RITMO ACELERADO: Primeiro epicentro da Covid-19, a China possuía dentro do próprio país as soluções para conter o surto. Com capacidade fabril doméstica para produção de máscaras, produtos de limpeza, remédios e equipamentos de saúde, conseguiu erguer um hospital em oito dias e hoje já vê o contágio cair drasticamente. (Crédito:Divulgação)