Uma das maiores autoridades em compliance no Brasil, a executiva Fernanda Barroso, presidente da consultoria Kroll no País, está enxergando uma profunda mudança cultural nas empresas brasileiras pós-Lava Jato. Para ela, o combate à corrupção nunca esteve tão em pauta no mundo corporativo como nos dias atuais. Além de desenvolverem mecanismos próprios de transparência, as companhias estão aprimorando seus conhecimentos nesse quesito e recrutando especialistas de fora. “Só vamos virar esse jogo se conseguirmos mudar nas pequenas ações do nosso dia-a-dia”, afirmou Fernanda à DINHEIRO. Confira, a seguir, sua entrevista:

DINHEIRO – Estamos em um momento em que todos estão muito mais atentos ao risco, com receio de processos e de descumprimento de compliance. Os empresários querem saber também quais cuidados tomar para não paralisar o negócio?

FERNANDA BARROSO – Do ponto de vista de governança corporativa, depois que a lei anticorrupção começou a funcionar efetivamente, em janeiro de 2014, as empresas passaram a ter uma preocupação maior em estabelecer controles internos mais efetivos. Houve, então, a implementação de programas de compliance. A lei, de certa forma, foi um reconhecimento da responsabilidade e do papel das empresas em atuar contra ilícitos. Ao mesmo tempo, a legislação permitiu que as companhias recebessem benefícios por ter programas de compliance bem implementados.

DINHEIRO – Suponhamos que uma construtora foi pega pagando propina para autorizar uma obra. Tudo foi provado, inclusive com gravações. Como ela pode reduzir esse dano?

FERNANDA – Isso depende muito se a construtora já tinha programa de compliance e controles internos implantados. Isso iria permitir a veficação da fraude. Desde 2014, as investigações da Lava Jato vêm colocando sanções administrativas sobre as empresas. Muitos executivos estão sendo presos. Então, quando você pergunta o que as empresas podem fazer, na verdade, a resposta é o que elas já estão fazendo. Isso é reflexo dos programas de compliance. Porque uma das coisas que a lei anticorrupção também coloca é que, quando qualquer parceiro de negócio atua em benefício daquela empresa, a companhia passa a ser responsabilizada juridicamente. Com isso, passou a ser essencial para as companhias verificar se o seu parceiro de negócio é idôneo, se possui algum tipo de sanção administrativa, litígio ou contrato obscuro com o setor público. Deve-se saber também que tipo de relacionamento as companhias mantêm com pessoas politicamente expostas.

DINHEIRO – Isso vale pra qualquer fornecedor?

FERNANDA – Isso vale principalmente para os fornecedores que são importantes para a sua cadeia de valor. Independentemente do preço do produto ou da receita que você paga para o fornecedor, ele pode ser um risco para você. Outra questão é fazer uma auditoria interna na sua empresa. É necessário conceder aos clientes o direito de entrar na empresa parceira e avaliar se houve desvio de recursos ou de conduta. Temos clientes que pedem auditorias periodicamente, de seis em seis meses. O objetivo é ver se o fornecedor está oferecendo algum tipo de risco comercial relacionado à lei anticorrupção.

DINHEIRO – Muitas multinacionais que são companhias abertas não divulgam dados sobre o Brasil. Mesmo elas estão tendo de revelar números?

FERNANDA – Sim. Mas vejo que tem sido difícil para algumas empresas aceitar esse tipo de cláusula e conceder essa prerrogativa para alguém que pode trabalhar com um concorrente. São dados sensíveis. Mas a realidade é que hoje é preciso aceitar essa auditoria para garantir determinados contratos.

DINHEIRO – Onde isso está acontecendo com mais frequência?

FERNANDA – Acontece mais no setor setor público e no varejo.

DINHEIRO – Quais são as principais irregularidades que a cadeia de varejo estaria procurando?

FERNANDA – Se algum fornecedor pagou propina para alguma prefeitura, por exemplo. Isso pode acontecer. Ela quer saber se todo dinheiro que saiu daquele fornecedor para pagamentos teve uma destinação específica. No momento em que vivemos, a corrupção não está apenas nos grandes contratos com empresas públicas, mas também está nos pequenos atos do cotidiano.

DINHEIRO – Quais são os cuidados que uma empresa que lida com isso frequentemente deve adotar?

FERNANDA – A empresa pode denunciar às autoridades, se desconfiar de algo. A lei de improbidade administrativa impede corrupção passiva. É crime. Se tem um funcionário público pedindo propina para fazer algo, isso pode ser denunciado. Existem saídas para fazer um contrato acontecer, sem que seja necessária uma ilegalidade. A empresa pode operar na legalidade.

“Desde 2014, com a Lava Jato, as empresas estão colocando sanções administrativas sobre os executivos”Agente da Polícia Federal recolhe documentos em empresa investigada por corrupção na operação Lava Jato (Crédito:Jose Lucena/Futura Press)

DINHEIRO – Mas empresários reclamam, informalmente, que é impossível fazer negócios com o poder público na legalidade.

FERNANDA – Acredito que é possível operar na legalidade, sempre. Como disse, a corrupção não existe só nos grandes contratos públicos, com grandes empresas. A corrupção existe nos pequenos atos do cotidiano entre pessoas físicas e instituições. Só vamos conseguir virar esse jogo se conseguirmos mudar nas pequenas ações do nosso dia-a-dia. Uma coisa que as empresas estão fazendo agora para averiguar a idoneidade das pessoas que irão trabalhar lá é a due dilligence também nos funcionários. As empresas hoje têm essa preocupação, por conta da corrupção, por conta do cenário que estamos vivendo, nos campos político, econômico e jurídico. Há a necessidade de verificar se a pessoa passou por processos que envolvem alguma atividade que possa ser ilícita, se ela tem alguma sanção administrativa, se ela pode ser uma boa administradora de empresa, do ponto de vista de honestidade e de idoneidade. Acho que as empresas estão mais preocupadas em contratar pessoas honestas nesse momento. Além disso, companhias que não fazem due dilligence têm mais dificuldades em abrir o capital.

DINHEIRO – Os problemas acontecem geralmente no departamento de
compras?

FERNANDA – Temos um relatório global que mostra exatamente isso. O departamento de compras sempre esteve em primeiro lugar do ranking de corrupção em todo o mundo. Neste ano, houve uma mudança interessante nesse dado. Agora, o item número um é o roubo de dados e de informações. Temos visto muitos vazamentos por meios digitais. Os hackers entram, têm acesso às suas informações pessoais e de cartão de crédito. Houve uma mudança de algo que era mais tangível, como um contrato de prestação de serviço, para algo mais intangível, que é o mundo digital.

DINHEIRO – Como combater isso?

FERNANDA – O caso precisa ser reportado às autoridades públicas, da mesma forma. Porque hoje, a denúncia voluntária é algo que as empresas também têm optado fazer como forma de mostrar que estão colaborando com as autoridades públicas, que são vítimas de fraude e que não tinham conhecimento dos fatos ilícitos. Diante do cenário de um desvio contábil ou mesmo digital, é fundamental reportar voluntariamente o fato, afastar as pessoas e fazer algum tipo de ajuste interno para corrigir a falha.

DINHEIRO – No mercado financeiro, isso já acontece?

FERNANDA – O mercado financeiro, do ponto de vista de compliance, sempre foi mais avançado. Os bancos já seguiam a regulamentação que era internacional e cujas sanções eram e são muito severas. Como passamos por diversas mudanças de políticas econômicas e monetárias, os bancos tiveram também que se proteger de alguma forma e definir controles internos rígidos para enfrentar as turbulências. O que temos visto agora é que as empresas e os grandes grupos familiares estão preocupados em administrar de forma profissional, até mesmo afastando um pouco a família da administração direta.

“Empresas que não fazem due dilligence têm mais dificuldades em abrir o capital”Abertura de capital da rede de fast-food Burger King, em 2017 (Crédito:Divulgação)

DINHEIRO – Até porque há o exemplo da Odebrecht, um grande grupo familiar, cujo principal executivo passou um tempo na cadeia. A empresa diminuiu bastante o seu tamanho e isso deve ter assustado muitas empresas…

FERNANDA – Sim. O que as pessoas estão vendo é que a aplicação da lei está acontecendo. Independentemente de qual é a empresa e qual é o setor. Depois desse caso, há várias companhias fornecendo serviços de canal de denúncias e fazendo a investigação interna, especialmente as consideradas graves.

DINHEIRO – Há uma enorme pressão para bater metas. Qual uma boa regra de decisão para saber se o que foi feito é irregular ou não?

FERNANDA – Tem várias questões que a empresa tem de levar em consideração. Essas questões estão na lei. A gravidade da situação, o tamanho do contrato, tudo isso é definido para chegar no valor da sanção que vai ser aplicada. Reportar o que ocorreu voluntariamente, afastar as pessoas, fazer algum tipo de ajuste contábil, por exemplo, por conta do desvio que aconteceu, ou tudo isso junto.

DINHEIRO – Qual é o pior caso que leva à punição mais pesada?

FERNANDA – A não cooperação e a ausência de controles internos. Não estamos falando somente dos administradores em si, mas da proteção a todos os acionistas que se beneficiam dos rendimentos daquele negócio. Então, os casos mais graves se dão quando a administração não está defendendo os direitos dos acionistas minoritários e está deixando de implantar controles internos para verificar se existe fraude.

DINHEIRO – Na dúvida, coopere com as autoridades?

FERNANDA – Acho que não tem que existir dúvida sobre isso.

DINHEIRO – A maior rigidez com relação às regras também vale para as empresas chinesas, quando elas buscam investir em companhias locais?

FERNANDA – As empresas que querem ser vendidas vão precisar de compliance. Mesmo as empresas chinesas que estão vindo comprar aqui têm essa preocupação. Há uma mudança grande na China, nos últimos anos, com o programa anticorrupção. Prova disso é que as pessoas do governo têm sido condenadas por casos de corrupção. Os chineses estão avaliando, em primeiro lugar, se a empresa tem ferramentas para identificar a fraude. Depois, analisam qual a estrutura ela tem para promover uma investigação. Isso tudo é levado em conta no processo pré-compra da companhia, e acaba sendo uma condição determinante para que o negócio seja concretizado.

DINHEIRO – Quero vender minha empresa para um investidor. É considerado corrupção convidá-lo para passar um fim de semana em um resort?

FERNANDA – Agente público não pode receber nenhum tipo de benefício, segundo a lei de improbidade administrativa. Existem algumas limitações que é melhor conversar com um advogado. Há também alguns limites financeiros. Por exemplo, acima de tantos reais não posso receber um presente. As políticas internas de cada órgão público tentam reduzir as subjetividades, definindo quais são os limites.