No futebol, uma frase redundante virou lugar-comum: “O jogo só acaba quando termina.” Eternizada na voz do icônico empresário Vicente Matheus (1908-1997), presidente do Sport Club Corinthians Paulista por 18 anos não consecutivos, o bordão nunca pareceu tão atual. É cada vez mais comum ver partidas desportivas serem decididas com gols, cestas e pontos nos últimos instantes. No jogo dos negócios não é diferente. A rede varejista Magazine Luiza já dava como certa a aquisição da Netshoes, que outrora foi precursora no comércio eletrônico de moda e artigos esportivos. O lance de US$ 62 milhões, a um preço de US$ 2 por ação, transformava o Magazine Luiza em uma grande rede de departamentos e colocava a empresa no rumo para se tornar uma ‘Amazon brasileira’, com presença em diversas categorias do mercado varejista. Anunciada na noite de 29 de abril, a transação não demorou a ser aprovada, sem restrições, pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), o órgão antitruste do País. A aprovação aconteceu em 23 de maio, antes mesmo que os acionistas da Netshoes dessem parecer favorável ao negócio.

Mas tudo mudou quando o Grupo SBF, dono da rede Centauro, resolveu entrar em campo e transformou a disputa pelo ativo num leilão. Foram quatro propostas até agora pela Netshoes, duas de cada uma das varejistas concorrentes. Após ver que o Magazine Luiza aumentou a sua oferta para US$ 93 milhões, a Centauro contra-atacou. Na quarta-feira 29, a rede de vestuário apresentou uma proposta avaliada em US$ 108,7 milhões, o equivalente a US$ 3,50 por ação. A disputa acirrada animou os investidores e fez com que os papéis da Netshoes disparassem na bolsa de Nova York (Nyse). No pregão do dia 29, a alta foi de 21,3%, com a ação cotada a US$ 3,70. Num intervalo de um mês, a Netshoes viu seus papéis subirem 39,6% e o valor do lance recebido pelo ativo avançar 75%. “Não podemos nos esquecer que a Netshoes tem uma dívida na casa dos R$ 400 milhões, o que é praticamente o valor que as empresas estavam oferecendo. Agora, com essa disputa, o ativo está começando a ficar caro”, diz Pedro Guasti, presidente do conselho de comércio eletrônico da FecomercioSP. “Mas, para ambas, seria uma compra estratégica e importantíssima”, completa.

A venda da Netshoes é tida como inevitável. Apesar de um faturamento anual bilionário – receita líquida de R$ 1,2 bilhão em 2018 –, a empresa nunca deu lucro. Ao abrir o capital nos Estados Unidos, em 2017, a ideia do fundador, Marcio Kumruian, era financiar uma expansão acelerada por meio de grandes fundos de investimentos. Agora, a negociação é vista como uma forma de sobrevivência diante da perda recorrente de capital e do aumento da dívida. “A Netshoes pagou o preço de ser uma das primeiras empresas a entrar no segmento online da categoria de esportes”, diz Jean-Paul Rebetez, sócio-diretor da GS&Consult, consultoria especializada em varejo. “Ela cresceu sua receita nos últimos anos, mas ainda tem muitas dificuldades operacionais.”

Transição com a venda, Marcio Kumruian deixará comando da Netshoes (Crédito:Claudio Belli/Valor/Folhapress)

Estima-se que a Netshoes precise de uma injeção imediata de mais de US$ 100 milhões para colocar o seu capital de giro em ordem. Por isso, parte da cúpula dos acionistas da empresa recomenda que o negócio seja finalizado o quanto antes com o Magazine Luiza. Como a transação já foi aprovada pelo Cade, o aporte viria mais rápido. Por atuarem nas mesmas categorias de produtos, a aquisição pelo Grupo SBF demandaria uma análise mais criteriosa por parte da entidade. “Seria importante que o Cade fizesse uma investigação um pouco mais aprofundada do mercado para entender quais são os players e se existe alguma interação concorrencial entre todos esses varejos especializados e os marketplaces em geral”, diz Olavo Chinaglia, especialista em direito concorrencial e ex-conselheiro do Cade. “A concentração de uma fusão entre a Centauro e a Netshoes seria superior aos 20% no mercado de comércio eletrônico nessa categoria. Com isso, a transação deixaria de ser analisada pelo rito sumário e passa a ser pelo rito ordinário, o que demanda uma investigação mais lenta.” O processo, caso a Netshoes opte pela oferta da Centauro, poderia demorar cerca de quatro meses para ser concluído, segundo Chinaglia.

AMAZON BRASILEIRA Em um mercado de margens justas, muitos especialistas acreditam que a decisão da Netshoes poderia pender para a Centauro, que captou R$ 772,2 milhões em sua oferta pública inicial de ações (IPO, na sigla em inglês) há pouco mais de um mês. “Para a Centauro, o negócio significaria avançar de maneira muito mais rápida a sua transformação digital, além de ser uma blindagem contra a entrada de um player importante nesse segmento como o Magazine Luiza”, afirma Eduardo Terra, presidente da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC). Há quem diga, no entanto, que a oferta do Magazine Luiza faria mais sentido para a perpetuidade da marca Netshoes. “Existe uma meta do Magazine Luiza em se tornar uma Amazon brasileira”, diz Ana Paula Tozzi, CEO da AGR Consultores. “Apesar de ser uma categoria de baixa margem, vestuário tem uma alta recorrência. A transação está de acordo com os objetivos da empresa e o Magazine Luiza ainda teria espaço para investir nas marcas próprias da Netshoes, como a Shoestock.”

Um dos empecilhos no processo de transição será a posição que Marcio e sua irmã Graciela, diretora de operações da Netshoes, exerceriam na nova empresa. Como o Magazine Luiza não tem expertise no mercado de vestuário, a ideia é manter o fundador como presidente da empresa por mais 12 meses, além de acionista minoritário. A proposta da Centauro, por sua vez, envolve a saída imediata do executivo. Uma assembleia de acionistas discutiria os rumos da Netshoes na quinta-feira 30. Mas um comunicado enviado pela empresa à SEC (Securities and Exchange Commission), na quarta 29, indicou um adiamento da reunião, ainda sem nova data. Com a disputa nivelada por cima, resta saber até onde vão Centauro e Magazine Luiza para ganhar relevância no e-commerce.