A TAP Air Portugal comemorou os 100 anos da primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul, ligando Lisboa ao Rio de Janeiro, com um voo especial no dia 1º de julho. O feito original, do matemático, navegador e geógrafo Gago Coutinho e do aviador e oficial da marinha portuguesa Sacadura Cabral, foi celebrado com pompa no voo TP075, da capital portuguesa ao Aeroporto do Galeão. Em 1922, o autoconfiante cientista e o corajoso piloto percorreram o trecho de 7.285 quilômetros em oito escalas, de 30 de março a 17 de junho. Foram 62 horas e 26 minutos de voo e muitas dificuldades, inclusive com troca de dois hidroaviões. O último deles um Fairey III chamado Santa Cruz, nome estampado no moderno Airbus A330-900neo que refez a rota centenária no início do mês em pouco mais de nove horas — a DINHEIRO embarcou no voo. A bordo, o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa. Discursou, concedeu entrevista no saguão de embarque e recepcionou os passageiros, que receberam de brinde uma garrafa de vinho do Porto em edição especial e degustaram moqueca de bacalhau. Tudo para celebrar, segundo o chefe de Estado português, “o momento muito importante da história”.

A programação organizada pela TAP foi para festejar, mas serviu também para marcar o território da companhia aérea em rotas brasileiras em um momento de desafios enormes para a empresa, que tenta se recuperar de sucessivas perdas nos últimos quatro anos. A pandemia atrapalhou, evidentemente. Mas os resultados já eram ruins antes. O balanço fechou em prejuízos crescentes: 22 milhões de euros em 2018; 95 milhões de euros em 2019; 1,060 bilhão de euros em 2020; e 1,599 bilhão de euros em 2021. O último resultado positivo foi em 2017, quando faturou 2,977 bilhões de euros, com lucro de 23 milhões de euros.

Um dos principais focos de recuperação está justamente na operação brasileira, a maior da TAP fora de Portugal e responsável por 25% a 30% da receita global. A companhia também é a maior estrangeira que atua no Brasil, com 15% de market share entre as cerca de 40 aéreas internacionais que voam por aqui. Em 2019, entre os 12,1 milhões de passageiros transportados em companhias de fora do País, 1,79 milhão (14,8%) estiveram nos assentos da TAP. Em 2021, o percentual se manteve: 14,9%. Mas o número total de passageiros caiu para cerca de um terço. “Somos a aérea líder que liga a Europa ao Brasil e temos definitivamente a intenção de reforçar essa presença”, afirmou a francesa Christine Ourmières-Widener, CEO da TAP. “Essa rota faz parte do nosso core business e uma das estratégias da rede é reforçá-la.”

Para alcançar resultados expressivos no Brasil, o foco está notadamente nos passageiros. Isso porque no final do ano passado foi encerrada a atividade da TAP ME (Maintenance & Engineering) Brasil, como parte do plano de reestruturação da empresa. O parque de manutenção, que funcionava no Rio de Janeiro, registrava perdas acumuladas mesmo antes da pandemia. O serviço do último contrato vigente foi feito em maio. Isso não afeta a operação de voos, que está em pleno avanço desde a metade do ano passado, quando começou a flexibilização das restrições à mobilidade doméstica e internacional.

Gradualmente, a TAP volta ao número de embarques de 2019 em território brasileiro. Desde de outubro, foram retomados os voos de Belém (PA), Maceió (AL) e Natal (RN). Porto Alegre (RS) reativou voo direto para Portugal em 29 de março deste ano. E desde maio ocorrem sucessivos aumentos de frequências de partidas. Belém passou a ter três por semana; Fortaleza (CE) agora tem voos diários; Rio de Janeiro-Porto, duas vezes por semana, São Paulo-Porto três semanais e, desde o dia 3 de julho, a capital paulista registra quatro decolagens a mais para Lisboa por semana, totalizando 18. Também há opções de partidas e chegadas em Belo Horizonte, Brasília, Recife e Salvador. Com tudo isso, no Brasil a TAP já está com 88% da capacidade de antes da pandemia. São 76 voos semanais atualmente, ante 86 em 2019. Neste ano, a expectativa é atingir os patamares de três anos atrás, quando a companhia embarcou daqui 10% dos 17 milhões de bilhetes emitidos globalmente.

Em 2021, os turistas brasileiros formaram o oitavo maior mercado para o destino Portugal, pelo indicador de hospedagem, segundo o Ministério do Turismo português. Por lá, os brasileiros gastaram 188,4 milhões de euros, na 12ª posição. Nos quatro primeiros meses de 2022, as estadias de turistas brasileiros registraram crescimento expressivo de 857,3%, em relação ao mesmo período do ano passado. Em gastos, de janeiro a abril deste ano, os visitantes do Brasil movimentaram 141 milhões de euros, equivalente a 75% de todo o ano de 2021 e aumento de 490% ante igual período do ano passado. Apostar no Brasil é uma medida acertada da TAP, segundo Marcus Quintella, diretor do Centro de Estudos e Pesquisas em Transportes, Logística e Mobilidade Urbana da Fundação Getulio Vargas (FGV Transportes). “É uma estratégia empresarial importante, adotada em momento adequado, pois o Brasil tem se mostrado um mercado mais estável do ponto de vista turístico, com a pandemia controlada.”

A antiga e inevitável fórmula de reduzir custos e aumentar a eficiência tem sido perseguida pela CEO da TAP, que completou um ano no cargo no mês passado. Desde então, implantou uma gestão cuidadosa das rotas disponíveis para operação, com a utilização do tipo apropriado de aeronaves, mais flexíveis às necessidades e eficientes. Em boa parte das rotas brasileiras estão sendo utilizados aviões do modelo A330neo, que entrega 400 milhas náuticas a mais do que os anteriores, com redução de 15% no consumo de combustível. A quantidade de aeronaves, inclusive, diminuiu. Eram 105 em 2019, agora são 96. O redimensionamento dos recursos humanos e dos custos com pessoal é outro foco da executiva, com passagens por Flybe e Air France. Havia 8.939 colaboradores da TAP em 2019. Número enxugado 24%, para 6.803, segundo o balanço de dezembro de 2021. A renegociação em grande escala dos contratos com os fornecedores e a adoção de uma nova política de controle rigoroso das despesas e investimentos por todas as áreas da empresa completam as atribuições de Christine Ourmières-Widener à frente da companhia, que voltou a ser totalmente controlada pelo governo português no fim do ano passado.

TURISMO FORTE As praias da região do Algarve são frequentadas por turistas de todo mundo durante o verão europeu. Portugal quer aumentar a frequência de brasileiros na localidade. (Crédito:Divulgação)

AJUDA OFICIAL Pelo movimento, que integra o plano de recuperação da empresa aprovado pela Comissão Europeia, a TAP já recebeu 1,7 bilhão de euros dos cofres públicos de Portugal, incluindo empréstimo de 1,2 bilhão de euros feito em 2020, primeiro ano de pandemia. A reestruturação inclui aporte total de 3,2 bilhões de euros para assegurar a viabilidade econômica em 2023 e a sua sustentabilidade até 2025. A injeção de dinheiro do contribuinte na companhia tem gerado críticas ao governo por parte da população, que aponta outras prioridades. O presidente do país, Marcelo Rebelo, tem feito apelo para que o povo português compreenda a situação. Ele reforçou isso antes de embarcar no voo comemorativo ao Brasil, dia 1º de julho. “Uma das missões nacionais da TAP é ligar Portugal às comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo”, disse.

Mas não é apenas por questões históricas. Tem a ver diretamente com a economia local. Na prática, com a companhia aérea sob controle português, muitos destinos que não dão lucro são garantidos por algo maior: o transporte de turistas a Portugal. O setor de turismo vai movimentar 35,8 bilhões de euros este ano e atingir 16,2% do PIB, segundo relatório de impacto econômico do World Travel & Tourism Council. Trocando em miúdos: nas contas do governo, é melhor investir na TAP e gerar riqueza a Portugal pelo turismo do que deixar a empresa nas mãos da iniciativa privada.

A recuperação é passo a passo, como gosta de dizer a CEO Christine Ourmières-Widener. Neste caso, voo a voo. O resultado ainda está bem distante. Assim como parecia impossível a travessia ­de Gago Coutinho e Sacadura Cabral em 1922.

CRISE AÉREA AFETA EUROPA E EUA

Divulgação

Não bastasse o gigantesco desafio de sanar sua saúde financeira, a TAP tem de enfrentar outros tipos de problemas. Vários aeroportos da Europa e dos Estados Unidos registram muita confusão, com centenas de cancelamentos de voos e bagagens extraviadas — entrevista do brasileiro Abdiás Melo (foto) à TV portuguesa viralizou após ele dizer que estava sem tomar banho e com a mesma cueca há seis dias. O caos foi iniciado na semana passada com a greve de colaboradores de duas companhias low cost, a Ryanair e a EasyJet, que exigem melhores salários e condições de trabalho. A mobilização ocorre justamente no período de retomada das viagens de lazer e negócios, durante as férias de verão do hemisfério norte. Há ainda o agravante da dificuldade na contratação de mão de obra qualificada, já que as operações de voo passaram praticamente do zero no ano passado para cerca de 90% dos níveis pré-pandemia atualmente. A situação levou a CEO da TAP, Christine Ourmières-Widener, a enviar carta aos clientes explicando o ocorrido e pedindo desculpas pelos transtornos. “Neste momento, reconhecemos que não estamos a oferecer o serviço de excelência que planejamos e que queremos que experiencie conosco.” Para ela, a crise deve permanecer nos próximos dias.

ENTREVISTA: Christine Ourmières-Widener, ceo da Tap
“Se tivermos um investimento potencial, faremos no Brasil”

Claudio Gatti

Qual é o papel do Brasil nos negócios da TAP?
O mercado brasileiro é o nosso segundo (maior), depois de Portugal. Representa quase 1/3 do nosso negócio mundial, então é realmente estratégico e significativo para a TAP. O primeiro mercado internacional fora de Portugal. A história mostra que sempre fomos pioneiros na ligação entre Brasil e Europa. Temos definitivamente a intenção de ficar e reforçar essa presença.

Isso deve aumentar ou ficar do tamanho atual?
Adicionamos algumas frequências. Este verão estaremos voando, por exemplo, do Porto, porque incluímos a frequência durante o nosso pico. Estamos trabalhando agora em nosso próximo verão e, claro, a única restrição que temos é a frota. Mas definitivamente o Brasil é mercado de rotas que para nós são realmente fundamentais. Então, se tivermos um investimento potencial faremos no Brasil para o próximo verão.

Qual é a expectativa de chegar ao mesmo número de voos que tiveram em 2019?
O mais rápido possível, mas lembre-se de que tínhamos uma frota de 105, agora somos uma frota de 96, indo a 97. É só uma questão de mix de frota e também de tripulação. Para 2022, em relação ao plano, decidimos restaurar ainda mais cedo algumas frequências, quase no mesmo nível de 2019. De toda forma, não perdemos nenhum destino. Estão todos restaurados. O último foi Porto Alegre para este verão.

Como a TAP vai terminar este ano em relação a 2019?
Nós temos algumas previsões, mas o ano que começou foi muito difícil. Nós tivemos a Ômicron, tivemos de cancelar voos. Nossa tripulação, nossos funcionários, estavam doentes. Todas as companhias aéreas tiveram esse problema. Acreditamos que este verão será absolutamente consistente com a capacidade de 90% que estamos divulgando.

Como você percebe o consumidor de viagens?
O cliente está desesperado (por viagens). Eles querem voar. Eles querem ser livres, querem viajar, então a demanda definitivamente existe. Foi uma boa surpresa.

ENTREVISTA: Marcelo Rebelo de Sousa, presidente de Portugal
“Quem decide o destino da relação entre os países são os povos”

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Qual a importância desses 100 anos da Travessia Aérea do Atlântico Sul?
É um momento muito importante da história. Portugal estava em situação difícil, a política era muito intensa e as coisas estavam muito divididas. O que uniu o país foi essa aventura. E no Brasil era o mesmo, tinha grande agitação política. Comemorar esse feito de 100 anos mostra que a TAP cumpre uma missão nacional.

Por que a estatização da empresa?
Hoje as companhias aéreas estão em franca concorrência e os portugueses aceitam contribuir financeiramente com a TAP porque acreditam que ela tem o dever com missões nacionais. A obrigação de ter memória nacional e interesses nacionais que as outras [aéreas] não têm. Há várias maneiras de explicar aos portugueses que o governo contribui com a TAP para manter a empresa forte, com qualidade. E uma das missões nacionais da TAP é ligar Portugal às comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo.

O cancelamento da agenda de Jair Bolsonaro com o senhor, no Brasil, abala as relações diplomáticas entre os países?
Não dramatizo. As relações entre Portugal e Brasil são entre povos. Temos de saber separar o que é fundamental e o que não é. Os povos continuam, os almoços podem mudar.

Mas nos últimos três anos não poderia ter sido construída uma relação mais próxima entre Portugal e Brasil?
Acho que a relação verdadeiramente importante é entre os povos. Quem verdadeiramente lidera essas relações são os povos. Os portugueses quando, no final do século 19 e meados do século 20, escolheram migrar para o Brasil, deram um impulso enorme na relação com o Brasil.

E agora o fluxo se inverteu…
São 230 mil brasileiros que nos últimos dez anos escolheram Portugal para viver. Quando os povos escolhem, não há ninguém que possa parar essa escolha. Quem decide o destino da relação entre os países são os povos. É função do presidente falar das relações dos países, de diplomacia, economia, língua, cultura…

Uma relação mais próxima gera quais avanços nessas áreas?
Essa relação está sendo feita como eu gosto: pelos povos. Muitas vezes os políticos subestimam os povos. Eles têm poder enorme e as relações são mais duradouras.