A Guerra Fria pode não ter sido das mais letais, mas foi bem longa. Os historiadores apontam seu início em 12 de março de 1947, dia em que o então presidente dos Estados Unidos, Harry Trumann, discursou no Congresso sobre seu compromisso de “defender o mundo livre contra a ameaça comunista”. Começava ali o maior programa de crédito dos EUA para apoiar a reconstrução de países europeus arruinados pela Segunda Guerra — que ficaria conhecido como Plano Marshall. Os historiadores ainda divergem sobre quando a Guerra Fria teria terminado: se em 3 de dezembro de 1989, com a queda do Muro de Berlim, ou em 1991, com o fim da União Soviética. Desde que o presidente russo Vladimir Putin invadiu a Ucrânia e passou a ameaçar o planeta com seu arsenal nuclear, um novo questionamento se impôs: será que a Guerra Fria acabou mesmo? Ou teria apenas entrado em período de dormência?

Ainda que essa seja uma questão parar ser dirimida em livros de história no futuro, o fato é que a Rússia está oficialmente em guerra com outro país e, não oficialmente, com boa parte do mundo. É aí que entra a chantagem nuclear de Putin. E mesmo que ele jamais digite os códigos necessários para disparar ogivas atômicas, especialistas advertem que há “um risco claro de acidente nuclear”. As aspas são do diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atômica, ligada à Organização das Nações Unidas (ONU), Rafael Mariano Grossi. Ele afirmou, em entrevista à BBC, que esse risco não reside apenas do lado da Rússia. A Ucrânia, ex-União Soviética, possui 15 reatores nucleares — inclusive o que talvez seja o mais famoso do mundo, em Chernobyl, cenário de um acidente gravíssimo em 1986 que resultou na morte de 9 mil a 16 mil pessoas por consequências da radiação. Com a invasão da Ucrânia, Chernobyl está sob o controle russo. E aí começa o pesadelo. Na quarta-feira (9), a companhia nuclear ucraniana Energoatom confirmou à agência de notícias Reuters que a energia em Chernobyl havia sido desligada. Uma falha no resfriamento dos reatores pode levar ao vazamento de material radioativo, repetindo a tragédia de 1986.

Ainda que nada disso se confirme, é sempre bom desconfiar das intenções de Putin. Essa é a maior preocupação da ativista sueca Beatrice Fihn, diretora da Campanha Internacional pela Abolição de Armas Nucleares. Em 2017, ela recebeu o Prêmio Nobel da Paz ao lado de Setsuko Thurlow, sobrevivente da bomba atômica lançada pelos EUA em Hiroshima, no Japão. “A Rússia utiliza seu arsenal nuclear como chantagem para invadir a Ucrânia e para que ninguém possa intervir”, afirmou Fihn. Mesmo ela, contudo, acredita ser pouco provável que Putin escolha disparar armas nucleares — como fez o presidente Harry Trumann na Segunda Guerra. Mas nada é impossível para uma mente como a de Putin. A destruição que ele vem causando na Ucrânia confirma o quanto de sangue ele está disposto a derramar para impor sua vontade.

Putin é um mal real, mas suas ameaças nucleares talvez não passem de ficção. Em 1964, no auge da Guerra Fria, o cineasta Stanley Kubrick (diretor de O Iluminado, Laranja Mecânica e 2001, uma Odisseia no Espaço), lançou Dr. Fantástico ou: Como Aprendi a Parar de me Preocupar e Amar a Bomba. O longa-metragem estrelado por Peter Sellers ridiculariza as motivações da supremacia nuclear e suas possíveis consequências. Os protagonistas são dois generais psicóticos do exército americano que ordenam um ataque à União Sovietica e acabam acionando um sistema de mísseis do país adversário chamado “máquina do juízo final”. Kubrick já havia denunciado os horrores da Primeira Guerra em Glória Feita de Sangue (1957) e voltaria ao tema em Nascido para Matar (1987), sobre a Guerra do Vietnã. Em Dr. Fantástico, o sarcasmo — especialmente do título — impediu que muita gente entendesse sua mensagem pacifista. Diante de uma ameaça nuclear, a decisão mais sensata está no caminho oposto: desarmar o mundo. É essa a esperança da ativista sueca Beatrice Fihn. Ela entende que o momento atual pode estimular as potências nucleares a refletir sobre o que seus arsenais representam para a humanidade. “Penso que há uma brecha e que podemos começar a trabalhar no desarmamento”, afirmou. A questão está colocada. Queremos viver sob ameaça ou nos livrar dela?

Celso Masson é diretor de núcleo da DINHEIRO