A rotina vinha sendo a mesma há trinta anos: com seus melhores casacos e suas idéias mais brilhantes, a elite empresarial e política do planeta se reunia em Davos, na Suíça, para seis dias de debates sobre as tendências da economia mundial. Mas na semana passada, quando o Fórum Econômico Mundial foi aberto para a edição 2001, seus freqüentadores ? gente importante como Bill Gates, George Soros e o primeiro-ministro japonês Yoshiro Mori ? tiveram de enfrentar um problema que não constava do roteiro antigo. Apareceu a polícia, tanto em sua forma física quanto intelectual. A primeira, de carne e osso, cercou com arame farpado o prédio que abriga o encontro e ocupou com 10 mil homens as ruas da pacata estação de esqui. O constrangimento foi imposto para evitar que manifestantes antiglobalização repetissem o quebra-quebra do ano passado, quando um policial ficou ferido e meia dúzia de ícones modernos ? como carros Mercedes e lojas do McDonald?s ? foram arrebentados a pauladas. A outra polícia, ideológica e imaterial, deu as caras dentro do prédio do Fórum. Ela forçou os organizadores a carregar na agenda social, ecológica e terceiro mundista, tentando dissipar a impressão de que Davos é uma festinha de liberais sem coração, parte do mesmo círculo demoníaco que inclui o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial do Comércio. Com esse espírito neosolidário, a seção de abertura do encontro, na noite de quinta-feira 25, foi entregue aos representantes dos governos da Índia, Tanzânia, Tailândia e Brasil. Em inglês de diferentes sotaques, eles desfilaram suas justas queixas contra os países ricos ?, o ministro Pratini de Moraes, da Agricultura, fez um discurso raivoso contra o protecionismo agrícola ?, receberam aplausos abundantes e foram retirados às pressas, sem debate, porque o palco seria ocupado por uma apresentação musical. ?Isto é basicamente um encontro de empresários. Não faz muito sentido tentar transformá-lo em outra coisa?, disse à DINHEIRO o veterano colunista Martin Wolf, do Financial Times, um dos economistas mais assíduos e respeitados de Davos, além de assumido neoliberal. Sua desconfiança em relação à agenda salomônica ilumina um dos riscos embutidos na organização politicamente correta do evento ? descaracterizá-lo como fórum de elite.

Por que um empresário americano pagaria US$ 10 mil para vir a Davos se o ambiente, o temário e a freqüência ficarem parecidos com os de uma reunião de terça-feira na sede das Nações Unidas? Por outro lado, os organizadores do Fórum ainda não parecem dispostos a aceitar passivamente a pecha de elitistas, deixando para verdes, sindicalistas e organizações populares o monopólio das causas sociais em escala planetária. ?Davos tem feito um esforço para trazer sindicatos e ONGs, mas a balança ainda pende para o lado de empresas e governos?, pondera o economista Joe Stiglitz, ex-economista-chefe do Banco Mundial e uma das vozes mais críticas em relação ao sistema financeiro. Para piorar as coisas, o antagonismo entre Davos e os ativistas anticorporativos ganhou ainda mais destaque com a realização em Porto Alegre, na semana passada, do encontro mundial de organizações contra a globalização, apresentado com grande sucesso como o anti-Davos. O desconforto com esse fantasma era tão evidente que, na quinta-feira, Pratini de Moraes cobriu-se com um lençol de agitador e tentou assustar sua audiência grã-fina ? enquanto, em Brasília, FHC abria fogo contra os gastos da administração petista para abrigar a assembléia de excluídos. ?As manifestações no mundo inteiro, assim como em minha cidade natal, demonstram insatisfação com a globalização?, disse o ministro brasileiro em seu discurso antiprotecionista. ?Esperamos que em Porto Alegre se façam propostas, e não apenas críticas.? Assim como o governo Fernando Henrique, os responsáveis pela organização do Fórum Econômico acompanharam com muito interesse a abertura do encontro alternativo na capital gaúcha. Se Olívio Dutra hospedasse um fracasso, rolhas de champanhe voariam dos dois lados do Atlântico.

?Momento histórico?

Houve passeatas, protesto e bagunça, punks misturados com sem-terra, africanos irmanados com franceses e bate-boca entre autoridades, mas em Porto Alegre, no Fórum Social Mundial aberto simultaneamente ao encontro de Davos, uma sólida arena de debates e decisões contra o neoliberalismo surgiu. Mais de 10 mil pessoas, saídas de 22 países diferentes e observadas por quase mil jornalistas, criaram um fato mundial. ?Este Fórum é um momento histórico, porque vamos passar de uma cultura do ?não?, para uma atitude ativa e elaborar alternativas?, diz um dos idealizadores do encontro e diretor-geral do jornal francês Le Monde Diplomatique, Bernard Cassen.

Cerca de 400 salas de discussões estarão abertas até quarta-feira, 30, dia de encerramento do Fórum. Dali devem sair propostas como o cancelamento total das dívidas públicas dos países do Terceiro Mundo, a defesa da Previdência Pública, o fim do Acordo Geral de Tarifas e Serviços e da Organização Mundial do Comércio, e mudanças no Banco Mundial e no FMI.

No primeiro dia, logo após a abertura, repleta de políticos de oposição, os participantes fizeram a ?Marcha contra o Neoliberalismo e pela Vida?. Tudo corria bem, até que um grupo se desgarrou da rota estabelecida para eleger o McDonald?s, no calçadão da Rua da Praia, alvo de ovos, tomates e tinta vermelha. Uma bandeira dos Estados Unidos foi queimada. A polícia chegou e, depois de algum empurra-empurra, o tumulto terminou. Nada grave ou fora do script.

André Jockyman, de Porto Alegre

RECESSÃO E BUSH ? Embora quebrado em sua rotina, e mesmo sob o risco de converter-se em palco de confrontos e manifestações barulhentas, o Fórum de Davos debruçou-se, como faz todos os anos, sobre os assuntos mais candentes do grande mercado global. E este ano havia dois temas impondo-se na pauta: a contração da economia americana e a atuação do novo presidente dos EUA, George W. Bush. As discussões sobre a nova administração americana foram prejudicadas pela ausência de representantes do governo republicano ? embora o buraco tenha sido compensado pela multiplicação, em Davos, de especialistas em política externa, uma das áreas acadêmicas que mais produzem PhDs nos Estados Unidos. Ouvidos por DINHEIRO, três deles manifestaram convicção de que a América Latina terá, sim, real prioridade na nova administração. Isso significa, para o Brasil, maior pressão pela construção da Alca, a Área de Livre Comércio das Américas. ?As pessoas que estão sendo indicadas são muito competentes e muito comprometidas com a idéia de livre comércio?, avisa Joseph Nye, da Universidade de Harvard. Para o economista Jefrey Sachs, que acompanha de perto a economia brasileira das últimas décadas, o resultado dessa pressão pode ser positivo para o Brasil. ?Se vocês conseguirem um acordo como o do México, que abriu suas fronteiras em troca de acesso total ao mercado americano, será muito bom?, afirma Sachs. ?Está na hora de o Brasil exportar, para poder crescer acima das taxas medíocres que vem crescendo. Seu governo tem sido excessivamente cauteloso nesse assunto.?

Na sexta-feira 26, segundo dia do Fórum, a estrela brasileira em Davos ? Armínio Fraga, presidente do Banco Central ? foi destacado para enfrentar uma situação de risco na área diplomática: um painel intitulado Sugestões para o Novo Presidente Americano. Ele enfrentou a tarefa com críticas ao protecionismo, recomendações diretas para a adoção de um amplo programa antilavagem de dinheiro, mas trombar, mesmo, trombou com o Japão. Pouco antes de sua fala, um representante japonês criticou o desempenho do FMI na Ásia. Armínio, em meias palavras, saiu em defesa da instituição. ?Eu não tinha procuração para defender, mas defendi?, disse ele pouco depois à DINHEIRO. Na área estritamente econômica, os participantes do Fórum saíram das primeiras discussões com a convicção de que a economia americana ? e, conseqüentemente, o mundo ? vai contornar a recessão e enfrentar apenas um breve interregno de desaquecimento. Um dos economistas mais conhecidos do planeta, o israelense Jacob Frenkel, garantiu na quinta-feira que as condições que produziram o grande boom americano dos anos 90 ainda estão de pé. ?Trata-se, agora, apenas de esfriar uma máquina que estava operando rápido demais?, diz ele. ?No segundo semestre, os EUA vão voltar a crescer forte.? O ex-presidente do BC israelense e ex-economista do Fundo Monetário, agora na Merril Lynch de Londres, acredita que o Brasil sofrerá um impacto pequeno em conseqüência desse soluço americano. ?Seu país conseguiu uma situação estável?, disse ele à DINHEIRO. Nos próximos dias, à medida que as estatísticas americanas forem se tornado mais claras, o mundo vai poder perceber se o otimismo de Frenkel prevalecerá sobre as visões das cassandras. Afinal, mesmo em minoria, não falta em Davos quem preveja um ajuste brutal nos EUA, uma agonia em sete atos no Japão e um crescimento medíocre na União Européia.