Como resposta a um atraso superior a 90 dias no pagamento, a empresa fornecedora de viaturas do governo de Mato Grosso não teve alternativa senão manter parte da frota parada em um pátio por dias. Os policiais do estado cobram não apenas a regularização dos veículos, mas os salários atrasados que estão em aberto. O desfalque na segurança alcança R$ 400 milhões e se soma aos R$ 1,7 bilhão de débitos que ficaram pendentes da gestão anterior. Não há dinheiro para fazer frente às obrigações. Nas palavras do secretário de Fazenda estadual, Rogério Gallo, parte do Orçamento “está podre”. Os recursos arrecadados em 2019 serão usado para pagar despesas contratadas no ano passado. O governador Mauro Mendes decidiu oficializar uma situação que já se impunha nos cofres há meses: o estado de calamidade. Um decreto foi publicado reconhecendo o período de exceção. O governo terá flexibilidade para descumprir, temporariamente, parâmetros da Lei de Responsabilidade Fiscal e fazer gastos emergenciais.

O precursor do dispositivo extraordinário foi o Rio de Janeiro. Em 2016, o governo estadual declarou calamidade financeira diante da virtual falência no período das Olimpíadas. De lá para cá, a situação se agravou. Neste ano, o Estado deve registrar um déficit de R$ 8 bilhões. Sem contar o buraco que se acumulou em passivos de anos anteriores, hoje identificados em R$ 18,5 bilhões. O quadro atual é de um número crescente de administrações em caos. Os dados vêm sendo revisados pelas novas gestões e mostram um cenário sombrio. Além de Mato Grosso, outros três governadores se viram obrigados a decretar a situação de calamidade: Rio Grande do Norte, Roraima e Goiás. Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, os três mais problemáticos, já haviam reconhecido o estado falimentar. “Não há a menor dúvida de que estão em regime de colapso”, afirma Ana Carla Abrão Costa, sócia da Oliver Wyman e ex-secretária da Fazenda de Goiás. “A última coisa que se atrasa é salários. Para chegar nesse ponto, não estão pagando fornecedores, obras e já há um impacto na prestação de serviços.”

A situação varia um pouco conforme a região. O que todos têm em comum é um elevado nível de despesas, provocado pelo excessivo peso da folha de pagamentos. O dinheiro que entra não é suficiente para pagar os gastos do mês. Por esse diagnóstico é possível perceber um problema estrutural na maioria dos entes federados e antecipar que a lista de calamidade pode engrossar nos próximos meses. Basta pegar o exemplo de Mato Grosso. Não há problemas de dívida como no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. O endividamento é equivalente a 49,4% da receita, um nível considerado saudável. Mas o gasto com pessoal subiu 700% desde o ano 2000, ante um avanço de 400% da receita no mesmo período. Até 2008, a despesa com a folha era equivalente ao custeio da máquina. Hoje, é quase quatro vezes maior, a um custo anual de R$ 13,2 bilhões, o equivalente a 64,9% da receita corrente. “Os serviços estão sendo precarizados em troca de uma valorização do servidor”, afirma o secretário da Fazenda, Rogério Gallo. “O problema é que não há condições materiais para prestar os serviços.”

Me dá um dinheiro aí: novos governadores se reuniram com Jair Bolsonaro antes da posse

Viaturas fora de uso por falta de manutenção se tornaram uma cena comum no Rio de Janeiro. A Polícia Civil chegou a pedir doações de materiais básicos como alternativa à continuidade da operação das delegacias. A falência das contas públicas, aliás, costuma desaguar na crise de segurança. Três estados que decretaram calamidade sofreram intervenção federal e passaram a contar com o Exército ou a Força Nacional nas ruas: Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Roraima. A Segurança é a segunda maior rubrica do orçamento fluminense, atrás apenas da Previdência. O contingente policial representa o segundo maior grupo de servidores estatais. Só que boa parte do gasto é consumida por profissionais que já não estão na ativa. O Estado despende mais com aposentados e pensionistas do que com os servidores que estão trabalhando.

O gasto com a Previdência está por trás do problema nos Estados. O déficit total acumulado nos regimes estaduais supera os R$ 90 bilhões. Há grande expectativa sobre a aprovação da reforma federal porque ela pode aliviar o custo com as aposentadorias especiais de professores e militares. As duas categorias têm regras menos rígidas e contribuem para aprofundar o descasamento entre o gasto com profissionais da ativa e os aposentados e pensionistas. Em Minas Gerais, por exemplo, as aposentadorias especiais representam 82% do total de inativos. O Estado é o que mais compromete recursos com a folha de pagamentos, quase 80% da receita. A nova administração identificou ainda um problema na contabilização dos gastos com pessoal. A despesa estava subestimada em cerca de R$ 10 bilhões no orçamento. A previsão é que o Estado encerre 2019, com um déficit de R$ 11, 4 bilhões, valor que não inclui o passivo em aberto encontrado pela nova gestão, de R$ 20 bilhões.

AJUSTE FISCAL A situação falimentar exige uma corrida dos novos gestores por soluções para preservar o caixa e garantir a prestação de serviços. As alternativas vão desde revisão de benefícios fiscais, corte de comissionados, renegociação de contratos até aumento da alíquota de contribuição de previdência. São soluções que estendem esforços já iniciados pelos antecessores nos cargos. Há uma percepção, porém, de que o problema é mais complexo. “O déficit é estrutural e requer um ajuste fiscal estrutural”, diz o secretário da Fazenda de Minas Gerais, Gustavo Barbosa. Ele descarta, por exemplo, priorizar a negociação sobre recursos da lei Kandir para colocar as contas em dia. A gestão anterior resistia a aderir ao plano de socorro federal por entender que tinha direito a esse débito com a União de mais de R$ 100 bilhões. “A gente deve partir para resolver o problema independente dessa solução”, afirma Barbosa.

Para o secretário mineiro, a adesão ao regime de socorro federal é um passo importante para o equilíbrio do Estado. Uma proposta está sendo desenhada pela Fazenda estadual e deve ficar pronta até fevereiro. A expectativa é tê-la pronta para levar ao legislativo em abril. A suspensão do pagamento da dívida com a União trará um alívio de R$ 26 bilhões em três anos. Minas Gerais apresenta o quarto maior nível de endividamento. A lista é liderada pela administração fluminense, com um comprometimento equivalente a quase três vezes a receita. A combinação de insuficiência de caixa e dívida alta permitiu ao Rio de Janeiro se tornar o primeiro – e único até então – a conseguir aderir ao plano de ajuda federal. Em seis anos, o alívio deve ser de R$ 30 bilhões no pagamento de juros. “A margem com a suspensão do fluxo de pagamentos vai permitir ao estado reorganizar suas finanças”, afirma o secretário da Fazenda fluminense, Luiz Cláudio de Carvalho.

Falta ainda definir detalhes da operação a ser feita com a companhia estatal de saneamento, a Cedae, um dos pontos de maior resistência do plano original. Servidores fizeram protestos contra a privatização. Entre as medidas em estudo, estão o fatiamento da companhia e uma abertura de capital. Carvalho não vê risco de suspensão ou cancelamento do programa de recuperação. Descarta ainda novos atrasos no pagamento de salários. Além disso, ele cita outras medidas de ajuste que estão sendo adotadas no estado, como uma fiscalização mais ostensiva a beneficiários de incentivos fiscais. Uma primeira operação em siderúrgicas instaladas no Rio identificou créditos potenciais de R$ 500 milhões.

As alternativas do lado da receita são pontuais. Os secretários de Fazenda rejeitam elevar impostos. “A sociedade não aguenta mais isso”, diz Ana Carla Abrão Costa. “Estaria aumentando impostos para pagar o salário de servidores.” Sem essa alternativa, mais governadores enxergam o socorro federal como uma opção. Rio Grande do Sul negocia a adesão com o Tesouro Nacional desde o ano passado. Goiás demonstrou interesse em dialogar com os técnicos da União, que estiveram em missão ao estado na última semana. O interesse deve esbarrar nos critérios de acesso ao regime, que exigem uma situação mais severa das contas públicas. O governador goiano, Ronaldo Caiado, lidera um movimento para pleitear a flexibilização das exigências, de modo atender estados problemáticos que não estão ainda em situação mais caótica. “Tinha que ser criado um regime que respeitasse as realidades locais”, afirma Gallo, de Mato Grosso. Ele descarta, por ora, interesse do estado em um socorro federal.


“Governadores vão perder tempo se acharem que Brasília é a solução”

Paulo Hartung, ex-governador do Espírito Santo. O ajuste feito no estado garantiu a única “nota A” do Tesouro

Como os estados chegaram nessa situação crítica?
Tem questões conjunturais e estruturais. O País contratou uma crise. A arrecadação dos governos desabou e muitos gestores públicos fizeram cara de paisagem para a crise conjuntural que estava contratada desde 2014.

Os governadores foram irresponsáveis?
Os prefeitos também. Ficaram achando que as repostas para os problemas estavam lá em Brasília. É um grande equívoco. Os novos governadores vão perder tempo se acharem que Brasília é a solução dos seus problemas. Tem um receituário que deve ser aplicado: diminuição da folha de pagamentos. É possível, sim, reduzir a folha de servidores. Tem como diminuir custeio, olhar investimentos, para saber se tem compatibilidade para tocar uma obra quando se precisa manter serviços como a farmácia e escolas.

A Lei de Responsabilidade Fiscal falhou em garantir a solidez dos estados?
Não, a lei é boa. É um instrumento importante para um diálogo que precisa ter com a sociedade. Quando tomei posse, o estado já estava no limite de alerta da lei. Isso nos dava um instrumento para explicar à sociedade o nosso comportamento. Muitos gestores ignoraram a Lei de Responsabilidade Fiscal.