Na primeira semana de fevereiro, as ações da rede de varejo americana GameStop foram, se não as mais negociadas, as mais citadas do mercado. Elas foram objeto de um fenômeno inédito, uma manipulação de preços realizada por pequenos investidores. Cerca de 5 milhões de participantes do fórum WallStreetBets, abrigado na rede de fóruns Reddit, forçaram uma alta nas cotações e provocaram prejuízos estimados em US$ 2,75 bilhões no fundo de hedge americano Melvin Capital.

Para entender o caso, é preciso mergulhar em alguns detalhes técnicos do mercado. Quando uma empresa vai mal das pernas, caso da GameStop, o mais provável é que o preço de suas ações caia. Investidores com perfil especulativo podem tentar ganhar dinheiro antecipando a queda, por meio de uma estratégia conhecida como venda a descoberto. Simplificando: o especulador aluga as ações de um investidor por uma fração de seu preço e as vende com o compromisso de uma entrega futura. Se as cotações caírem, esse especulador recompra as ações por um preço mais baixo, as entrega a quem de direito e embolsa a diferença como lucro. Porém, se as ações subirem, ele sofre um prejuízo.

Essas estratégias são arriscadas. Além de correr o risco dos preços, o especulador tem de depositar uma garantia para montar essas posições vendidas. Conhecida como margem, essa garantia é exigida pelas corretoras e pelas bolsas para garantir que os compromissos sejam honrados. Se os preços subirem muito, o prejuízo se amplifica e o especulador tem de depositar mais dinheiro para honrar as margens. Assim, uma alta de preços se torna a tempestade perfeita.

Foi o que ocorreu com o fundo Melvin, que assumiu uma posição vendida a descoberto maior do que o total de ações em circulação no mercado. Mesmo que os gestores quisessem zerar essa posição, não haveria papéis suficientes para isso. Alguns pequenos investidores perceberam a distorção. Eles começaram a comprar ações por meio da corretora on-line RobinHood, que não cobra comissões. Depois de comprar as ações, eles contaram a novidade para os amigos, que fizeram o mesmo. E espalharam a notícia.

Moral da história: as ações da GameStop haviam encerrado 2020 a US$ 18,84. No fim de janeiro, elas eram cotadas a US$ 483, alta de 2.464%. Pequenos investidores, depreciativamente chamados de “sardinhas” embolsaram belas quantias. Profissionais do mercado, maldosamente apelidados de “tubarões”, faliram. Nos primeiros dias de fevereiro, um movimento semelhante ocorreu com os contratos futuros de prata negociados em Nova York. No entanto, a alegria durou pouco. Na sexta-feira (29), a RobinHood limitou as transações e os investimentos com as ações da GameStop e de outras 49 empresas cujos papéis estavam sendo usados para vendas a descoberto. Nomes outrora dominantes no mercado de tecnologia, mas que vêm passando por problemas, como Nokia ou Blackberry.

FOCO NO LUCRO Apesar de parecerem atos de “justiça” dos pequenos investidores contra os poderosos, movimentos como esse visam simplesmente ganhar dinheiro. “As redes sociais permitem que os pequenos investidores se mobilizem, não apenas no sentido ativista, mas também no financeiro”, disse o diretor da empresa de assessoria de investimentos EWZ Capital, Henrique Castiglione. Segundo ele, a tendência é que esses movimentos sejam observados com mais atenção pelas autoridades do mercado de agora em diante.

O fato de a RobinHood ter limitado as transações de seus próprios clientes mostra que o espaço para mobilização de pequenos investidores não é grande. O que pode começar como uma tentativa de equilibrar as forças díspares do sistema financeiro pode acabar como movimento de manipulação de preços, só que realizado por pequenos investidores em vez dos pesos-pesados do mercado. “Um grupo de pequenos investidores atuando em conjunto para ser ouvido é uma coisa, mas uma atuação para alterar preços é algo bem diferente”, disse Castiglione.