O artigo 5º da Constituição Federal é bem claro: todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Mas a realidade é muito diferente do que está escrito no papel. Alguns são mais iguais que outros. E no conceito dos diferentes está a população negra (e parda) no Brasil, ainda que represente a maioria da população, com 56,1% do contingente de brasileiros, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Prova disso foi a enorme repercussão do programa de trainees exclusivo para negros pelo Magazine Luiza, alvo de críticas por parte de quem chegou a dizer que a medida seria um racismo reverso. Para avançar nessa pauta, a companhia decidiu repetir a receita em 2022 e lançou, na última terça-feira (21), o novo programa de trainees voltado para candidatos negros. “A gente tem um longo caminho pela frente. Um ano não seria o suficiente”, disse o CEO, Frederico Trajano.

O programa será semelhante ao trabalho desenvolvido neste ano e que vem preparando 19 trainees para cargos de liderança na empresa. Foram 22 mil candidatos inscritos no primeiro. Para o grupo que começará em janeiro, o salário será de R$ 6,8 mil mais benefícios. Não há um número exato de quantos serão selecionados, mas deve girar perto de 20. No ano passado, a empresa foi criticada pela política afirmativa. Nas redes sociais, foram feitas postagens do tipo “Se você é branco e pardo não compre no Magazine Luiza. Deixe só o povo negro comprar” e “Será que se eu tingir minha filha de preto ela consegue uma vaga?”.

Logo após o anúncio do programa de trainees para 2021, em setembro de 2020, a presidente do Conselho de Administração do Magalu, Luiza Helena Trajano, disse à DINHEIRO que a companhia tinha noção que a ação, de certa forma, quebraria paradigmas no Brasil e, portanto, seria alvo de ataques. “A reação veio um pouco maior do que esperávamos, mas também tivemos muito apoio. Este foi um recurso que usamos para estimular a diversidade, que faz parte da nossa cultura”, afirmou, na ocasião.

ESFORÇO PELA INCLUSÃO Para Frederico Trajano, a baixa participação de negros em lideranças é um problema para a empresa. (Crédito:Claudio Gatti )

Para entender melhor o universo de negros dentro da própria empresa, o Magalu realizou um censo, no ano passado, entre os 47 mil colaboradores. Do total, 77% responderam e 51,8% se declararam negros. No quadro geral de lideranças, incluindo área de operação e de escritórios, o índice cai para 41,5%. Levando-se em conta líderes negros somente na área administrativa, o porcentual é de 21,1%. O horizonte da varejista é que o universo de funcionários negros represente a fotografia da sociedade, com um índice pouco acima da metade. “A baixa participação de negros em lideranças é um problema. E um problema nosso”, afirmou Frederico Trajano. “Vou comemorar quando parcela relevante desse grupo virar gerente e diretor.”

A percepção hoje da empresa é que o novo programa também deva ser alvo de críticas, mas numa intensidade um pouco menor. Para Patrícia Pugas, diretora executiva de Gestão de Pessoas do Magalu, a iniciativa contribuiu para o debate na sociedade. “Estamos em um momento muito polarizado e, infelizmente, devemos ter algum tipo de movimento contrário. Mas o programa trouxe esclarecimento para muita gente”, disse a executiva.

Mas as pessoas ainda falam sim sobre racismo reverso. Ainda que a maior parte dos comentários na página do Facebook da empresa, após o anúncio deste ano, seja positiva, algumas aberrações já foram escritas por internautas sobre o segundo programa para negros. Um homem, que se identifica como eleitor de direita, escreveu: “É hora dos brancos não comprarem mais nesta loja”. Outro, também branco, e eleitor declarado de Jair Bolsonaro, disse: “Nunca mais terá um centavo meu”. De outro cidadão, partiu a seguinte afirmação: “Preconceito com a gente que é de cor clara”.

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“Essa ação consolida a tendência e acaba com dúvidas se o programa do ano passado seria o único” José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares.

Para José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, parceiro do Magalu no programa, a iniciativa ratifica o discurso da companhia de querer trabalhar para aumentar a diversidade. “Essa ação consolida a tendência e acaba com dúvidas se o programa do ano passado seria o único. Quando o Magazine Luiza lança o segundo, mostra que está, de fato, fortalecendo essa agenda”, disse. O caminho para a igualdade é longo, mas o segundo passo já foi dado. Mesmo que alguns ainda insistam em remar contra a maré.