O mercado de pagamentos é um campo fértil para negócios — e batalhas. Iniciada há mais de uma década, “guerra das maquininhas” foi travada por grandes bancos e empresas de adquirência para ampliar a oferta de terminais de pagamento. A estratégia era reduzir seu custo, democratizar o acesso e, assim, chegar até os microempreendedores. Hoje, a disputa é pelos sistemas de pontos de venda, mais conhecidos como PDVs. O cenário mudou com duas iniciativas do Banco Central (BC), os pagamentos instantâneos via Pix e o open banking. As duas tecnologias abrem um novo front nessa guerra, que envolve bancos, empresas de adquirência e, desta vez, desenvolvedores de softwares.

A razão para isso é que tanto o empresário varejista quanto o cliente — esse ser cada vez mais difícil de seduzir —, querem praticidade. Daí as vantagens para o empresário em incluir funções de pagamento nos softwares de pontos de venda. Isso facilita o relacionamento entre o vendedor e o cliente. E melhora a gestão do estabelecimento, ao incluir funções burocráticas como contas a receber e gestão de estoques. Não é a única vantagem. O varejista também reduz custos. Em vez de estar sujeito ao “pedágio” de entregar um percentual de cada transação à empresa de adquirência, o comerciante paga uma tarifa fixa para quem escreveu o programa. Essa mudança estrutural abre uma nova frente de ganhos para os desenvolvedores de software de gestão. Seus programas já faziam todo o trabalho da porta para dentro da loja. Agora, incluem as funções de pagamentos e lucram mais.

SOFTWARE Essa tendência é confirmada por uma onda de aquisições. O maior negócio recente foi a disputa ferrenha entre Stone, Cielo e Totvs pelo controle da Linx, especializada em software para PDV. A vencedora foi a Stone, com um lance de R$ 6,7 bilhões, em agosto de 2020. Mas a agitação não parou por aí. Em maio deste ano, a GetNet, empresa de adquirência do Santander, anunciou a compra da catarinense Eyemobile, que desenvolve sistemas de vendas e pagamentos para pequenas e médias empresas. Segundo o presidente da Getnet, Pedro Coutinho, a aquisição visa fortalecer o portfólio do segmento de PMEs, incorporando novas tecnologias e dando maior suporte aos empreendedores. “Pix e open banking são evoluções no mercado financeiro que proporcionam mais opções de pagamento para o consumidor. Não vemos exclusões, tudo se complementa e há espaço para todos”, disse ele.

Mesmo participantes tradicionais do mercado embarcaram nesse movimento. “O PDV será a grande frente de relacionamento com o cliente, porque o programa já tem todas as informações da empresa, e agora agrega mais um item, o pagamento”, disse o diretor executivo da Matera, Diogo Meirelles. Especializada no desenvolvimento de sistemas para o setor financeiro, a companhia fornece soluções para os aplicativos da Claro Pay e da Magalu Pay, entre outras. Agora, em parceria com a Softcom, uma desenvolvedora de softwares paraibana especializada em programas de gestão para PMEs, a Matera está abrindo uma divisão voltada para o varejo que vai incluir um módulo de pagamento. “Nós já tínhamos a solução pronta, que hoje está presente em várias plataformas de pagamento. Só fizemos uma versão pocket para a Softcom integrar ao sistema”, disse Meirelles. A Matera tem parceria com 200 software houses e espera chegar a 300 parceiros até o fim do ano. “Esse novo negócio pode se tornar maior do que o antigo”.

Para a Softcom, que atende 13 mil empresas por meio de sete unidades próprias e 74 franquias, a parceria abre perspectivas de crescimento. “As PMEs são mais de 90% das empresas no País”, disse o CEO da Softcom, Renato Rodrigues. Para ele, Pix e open banking vão mudar a forma de fazer negócios. No primeiro momento, a nova tecnologia do Banco Central vai substituir instrumentos de envio de dinheiro, como TED e DOC. Em seguida, o Pix Cobrança vai acabar com os velhos boletos. E, finalmente, substituirá o parcelado. “Isso atingirá os adquirentes e permitirá a outras empresas ofertar serviços financeiros adicionais, como antecipação de recebíveis”, disse.

A Totvs já vislumbrava as oportunidades do mercado de PDVs mesmo antes de entrar na disputa pela Linx. Em 2019 a gigante brasileira dos softwares de gestão (ERP) criou a Techfin. A nova divisão incluiu o módulo de pagamentos em seus softwares presente desde indústrias até escolas. “O varejo é só a ponta de um iceberg. E vendo os números de adesão ao Pix podemos comprovar que isso será muito maior do que se esperava”, disse o diretor executivo da Totvs Techfin, Eduardo Neubern. Os números do BC mostram que o sistema de pagamentos instantâneos tinha 254 milhões de chaves cadastradas no fim de maio. Entre o lançamento, em 16 de novembro de 2020, e o fim de maio, o Pix processou 2 bilhões de transações e movimentou R$ 1,4 trilhão.

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“O PDV será a grande frente de relacionamento com o cliente” Diogo Meirelles diretor executivo da Matera

MUDANÇA ESTRUTURAL Segundo a consultoria de e-commerce e meios de pagamento GMattos, o Pix tem ganho aceitação também entre os líderes do comércio eletrônico, e 32,2% deles já oferecem essa opção de pagamento aos clientes. O estudo analisou 59 lojas on-line entre os dias 3 e 12 de maio. Na comparação com a edição anterior da pesquisa, realizada em março, a aceitação era de 25,4%, um crescimento de quase sete pontos percentuais. “O Pix hoje representa só 1% das vendas, mas deve chegar a 5% até o fim deste ano e atingir 10% em maio de 2022”, disse o fundador da consultoria, Gastão Mattos.

Nem a facilidade das maquininhas, especialmente para os microempreendedores, tira o ânimo dos desenvolvedores de softwares. É o caso da MarketUP. Ela oferece ERP e PDV totalmente gratuitos para os empresários cadastrados no Simples Nacional. Os sistemas podem ser instalados até em celulares. “Já temos cerca de 150 mil empresas rodando com nosso software. E não tem pegadinha, é gratuito mesmo”, disse o CEO da MarketUP, Carlos Vicente de Azevedo. Como a plataforma também funciona como um marketplace, grandes marcas podem fazer publicidade para os clientes. A MarketUP cobra um percentual, que varia de 0,5% a 5%, pelos comerciais e pelos negócios fechados. “Os pequenos podem se beneficiar na gestão, nos pagamentos com PIX e ainda se abastecer diretamente com os anunciantes, sem precisar se deslocar”, disse. “E vamos tirar os clientes do internet banking, pois vamos incluir uma conta digital para que o pequeno empreendedor faça suas compras e receba os pagamentos num único lugar”, disse Azevedo.

A revolução vivida pelo mercado de pagamentos pode chegar aos bancos. Isso porque os programas de ERP farão operações de contas a receber e de contas a pagar. Com os dados dos algoritmos, as empresas podem oferecer melhores condições em serviços financeiros, como antecipação de recebíveis e fluxo de caixa, que hoje são processados pelas maquininhas. “Elas não vão sumir, mas vão perder a relevância”, disse Azevedo.

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“O varejo é só a ponta de um iceberg. E os números do PIX comprovam que isso será muito maior” Eduardo Neubern diretor executivo da Totvs Techfin.

Uma pesquisa do Itaú mostrou que a expansão das transações nesse ambiente impulsionou os cartões virtuais, que expiram após o uso e conferem maior segurança às operações de e-commerce. O valor transacionado dessa forma avançou 163% no prmeiro trimestre na comparação ao mesmo período de 2020. Nos pagamentos por carteiras digitais, a alta foi de 80% no total. Entre os consumidores da Geração Z, o avanço foi de 192%. O número de transações por aproximação em maquininhas, que evitam o contato físico, cresceu 4,4 vezes em relação ao primeiro trimestre de 2020. Na comparação com o mesmo período de 2019, chega a 34 vezes.

LINKS DE PAGAMENTO Esse fenômeno foi notado pela Yapay, plataforma de pagamento do grupo Locaweb que teve receita líquida de R$ 160,9 milhões no primeiro trimestre, alta de 53,9% em comparação com o mesmo período de 2020. O e-commerce atingiu R$ 65,4 milhões de receita líquida. Isso só ocorreu diante do resultado na adição de novas lojas, 44,4% a mais que no quarto trimestre do último ano. “Investimos na inclusão do Pix e na criação de links de pagamento, porque os lojistas estão demandando”, disse a diretora comercial da Yapay, Natália Tukoff, acrescentando que o grande ganho vem com a liquidez dos pagamentos e com a possibilidade de antecipar recebíveis e melhorar o fluxo de caixa.

O consultor do setor financeiro Boanerges Ramos Freire diz acreditar que as empresas estão diante de uma mudança estrutural gigantesca. “Os diversos meios de pagamento devem conviver por um bom tempo. Seja dinheiro, cheque, boleto, cartão ou Pix. Quem vai escolher a forma de pagar é o cliente”, afirmou Freire. Claro que o varejista deve se adaptar às novas tecnologias, segundo ele, mas isso leva tempo. De acordo com o consultor, a pandemia acelerou todo o processo de digitalização e a competição no B2C ficou mais acirrada. “Mas o B2B, que é bem maior, ainda está atrasado”.