Superministro, guru da economia e “posto Ipiranga”. Essas foram algumas das definições usadas pelo presidente Jair Bolsonaro antes da eleição de 2018 para descrever o papel central que o ministro Paulo Guedes teria na condução da atividade econômica brasileira durante seu governo. Era uma maneira de obter a aprovação do mercado e passar a mensagem de que sua gestão traria um inédito choque liberal, aliviando o peso do Estado na economia. Em 18 meses, no entanto, a atuação do ministro parece não ter sido quela desejada pelo chefe do Executivo. Nas últimas semanas, afundado em uma crise política que teve seu ápice com a saída de Sergio Moro do ministério da Justiça, Bolsonaro se viu em uma situação na qual virar as costas para Guedes seria perder parte importante do apoio que lhe resta, tanto da opinião pública quanto dos agentes do mercado. “O homem que decide a economia no Brasil é um só: Paulo Guedes”, afirmou o presidente na manhã da segunda-feira 27. Será?

Embora as afirmações de Bolsonaro sempre devam ser vistas com desconfiança, já que faz parte de seu estilo recuar das próprias decisões, as palavras soaram como música para Guedes. Eram o aval de que ele precisava para se posicionar claramente sobre decisões tomadas à sua revelia e que envolvem diretamente os recursos sob sua gestão. O czar da economia questionou a eficácia do plano desenvolvimentista estatal Pró-Brasil e seus desdobramentos em um projeto de longo prazo que tenta se desgarrar do conceito paternalista de governos anteriores. Agora, como em jogo de xadrez, chegou a hora de o superministro se preparar para o xeque, mostrando a vulnerabilidade das outras peças no tabuleiro — incluindo o rei.

Antes de reverter o jogo em seu favor, foram muitos os sinais ignorados por Bolsonaro no que diz respeito à insatisfação de Guedes com parte de uma agenda recém-implementada pelo ministro da Casa Civil, Walter Braga Netto, e pelo ex-secretário de Previdência de Guedes, hoje ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho. Com o nome Pró-Brasil, o projeto funciona como um Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), programa ineficiente na avaliação do ministro da economia. Como resposta à clara insatisfação de Guedes, Bolsonaro tentou retificar o fato de o programa ter sido criado sem o dedo do superministro, afirmando, depois que o projeto já havia sido lançado, que nada seria feito sem aval de Guedes. Mas o estrago já estava feito. A relação dos dois vinha esfriando desde a divulgação do PIB de 2019, quando a economia não cresceu o esperado. “Paulo Guedes é o pilar, o esteio que avaliza o presidente Bolsonaro, que não é a preferência de ninguém que tenha algum tipo de razoabilidade”, afirma o economista e CEO da Trevisan Escola de Negócios, VanDyck Silveira.

General Braga Netto: O ministro da Casa Civil é dos mais influentes com Bolsonaro e foi um dos padrinhos do projeto Pró-Brasil. (Crédito:Pablo Jacob)

Agora fortalecido na batalha que pretende travar, Guedes tem a chance de fazer o que acredita ser o mais importante para o País: preservar a atividade econômica, que ele compara a um organismo vivo, e respeitar os limites de gasto do governo. “O presidente tem me apoiado, o Congresso é reformista e a sociedade, aberta”, afirmou o ministro na manhã da quarta-feira 29 durante uma live organizada pela Latam Retail Show que teve a participação do empresário Abílio Diniz. “Estamos sendo muito elogiados tanto do ponto de vista fiscal quanto monetário”, disse Guedes, antes de enumerar as ações que colocou em marcha na tentativa de atenuar os efeitos corrosivos da pandemia de Covid-19 sobre a economia. O plano do ministro, que envolve cerca de R$ 800 bilhões, envolve desonerações para as empresas, auxílio emergencial de R$ 600 a 40 milhões de brasileiros que segundo ele “eram invisíveis” e incentivo para manter salários, além de repasses para os outros entes federativos. “Vamos ajudar os estados e municípios descentralizando recursos em alta velocidade. O pacto federativo já está no Congresso. Foram mais de R$ 50 bilhões em programas para manter o emprego”, resumiu Guedes.

Ainda que com falhas na execução, as decisões do ministério da Economia se mostraram convincentes para minimizar as inevitáveis perdas provocadas pela paralisia global desde o início da crise do coronavírus. Se o mercado reconhece a capacidade de Guedes em buscar soluções para o problema, dentro do Congresso Nacional sua posição é um pouco mais problemática. Tanto que o ministro preferiu evitar o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e fazer um movimento em direção ao presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP).

Rogério Marinho: Ex-secretário da Previdência e hoje chefiando o ministério de Desenvolvimento Regional, o antigo aliado se indispôs com Guedes. (Crédito: Fabio Rodrigues Pozzebom)

Na última semana houve ao menos dois encontros entre os dois, com o objetivo de alinhar medidas que aliviem o peso da pauta-bomba aprovada na Câmara, que envolve ajuda fiscal aos estados e municípios em função da Covid-19. Com previsão de ser votada no Senado no sábado 2, as conversas sobre alterações no Projeto de Lei Complementar (PLP) 149/2019 parecem ter surtido efeito, e entre as mudanças que o Senado deve fazer do texto que chegou da Câmara está a limitação do valor e do prazo de compensação de ICMS e ISS a ser feita pela União a estados e municípios. À DINHEIRO, Alcolumbre afirmou que a proposta deve incluir ainda o congelamento de salário de todo o funcionalismo pelo prazo de 18 meses, o que resultaria numa economia de R$ 130 bilhões. “Todas as alterações foram negociadas com a equipe econômica e com os deputados”, disse.

A estratégia de Guedes permite que a União tenha um fôlego no repasse de recursos aos estados e municípios. O ministro agiu rápido para evitar que as alianças aventadas por Bolsonaro não minassem suas chances de diálogo com parlamentares liberais. Em busca de apoio político no Congresso, o governo acenou para nomes já conhecidos da velha política. “Depois de firmado o acordo com o Centrão, Guedes não teria mais trânsito livre no Senado. Ele foi rápido e garantiu algumas vitórias importantes no PLP 149”, afirmou um senador que esteve nas reuniões convocadas pelo ministro. “Ficaram evidentes dois pontos na conversa com Guedes: há uma insatisfação latente com o [Rogério] Marinho, e receio da influência da ala militar na agenda econômica.”

Marinho, que atuou como braço direito de Guedes durante os trâmites da Reforma da Previdência, foi alvo de duras críticas da equipe econômica do governo devido ao projeto desenvolvimentista desenhado no Pró-Brasil, que repete receitas eleitoreiras e sem sustentação de longo prazo, já que fomenta o crescimento com obras financiadas pelo poder público. “É uma maluquice aventada pelo Rogério Marinho e Tarcísio [Gomes de Freitas, ministro da Infraestrutura], que botaram na cabeça dos militares que pode ter outro milagre econômico por meio de gasto público. Isso não é Paulo Guedes”, afirma o economista VanDyck Silveira.

Guedes admite ter havido um “mal entendido” sobre o programa Pró-Brasil. “O ministro da Casa Civil é quem pega os pedidos junto aos demais ministérios. E a pasta da Economia faz a programação dos recursos”, afirmou, durante a live da quarta-feira 29, deixando claro que é seu papel cuidar do orçamento. “O caminho do PAC já foi seguido, e deu errado”. Para Guedes, não é o poder público que pode fazer o Brasil decolar e sim o setor privado. “Há trilhões de dólares lá fora e centenas de bilhões aqui para serem investidos em saneamento, energia, transporte, infraestrutura”. Esses recursos, entende o ministro, só virão se mantida a agenda de reformas e a criação de marcos regulatórios, além de medidas para desonerar a criação de empregos.

Com a sinalização de que Guedes voltou a guiar a economia, o mercado respirou um pouco mais aliviado. Segundo um dos interlocutores do ministro, foram inúmeras as ligações recebidas na última semana com pedidos de esclarecimentos sobre o “novo PAC”. O ministro ficou em uma saia justa. “Sabíamos muito pouco sobre o programa. Mas isso já foi contornado” disse um interlocutor de Guedes, em condição de anonimato.

“Há trilhões de dólares lá fora e centenas de bilhões aqui para serem investidos em saneamento, energia, transporte, infraestrutura” Paulo Guedes, Ministro da Economia. (Crédito:Anderson Riedel)

O principal argumento para as críticas de economistas liberais era que tal medida exigiria uma mudança na Constituição ao derrubar o Teto de Gastos, aprovado em 2016 pelo governo Michel Temer. “Seria inviável fazer algo assim por um projeto que já se provou ineficaz no longo prazo”, afirma o professor de economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Roberto Fonseca. Para o acadêmico, com exceção do Minha Casa Minha Vida e a transposição do Rio São Francisco, as grandes obras do PAC não saíram do papel ou saíram muito mais caras que o projeto inicial. “Quando se anaboliza projetos com orçamento público, cresce também o gasto. São obras longas, com percepção errada de que há sempre mais dinheiro”, diz.
Chamado de “Plano Marshall brasileiro”, o programa não apenas vai contra todas promessas de campanha de Bolsonaro, mas também coloca em risco a atividade econômica nos próximos anos. Em conversas privadas, o Guedes teria dito diretamente ao presidente que o Pró Brasil enfraqueceria a economia até 2022, ano eleitoral. Depois disso, não demorou para que o presidente viesse a público defender o Teto de Gastos e devolvendo a carta-branca de Guedes no rumo da economia.

“No retreat, no surrender”. Foi com essa frase que um dos interlocutores do ministério da Economia definiu a postura de Guedes. Em tradução livre, a sentença “sem recuo, sem rendição” definiria a postura de Guedes em um momento crucial do governo. “Guedes sabe de seu potencial. A saída de Moro abalou o governo, mas sem o ministro da Economia o terremoto teria uma escala muito maior”, afirmou o consultor político Emerson Camargo, que atua em Brasília junto ao PSDB.

Nada de PAC Para Guedes, o Pró-Brasil traz o risco de repetir erros de governos passados, quando dinheiro público foi escoado para obras que não avançaram. (Crédito:Dida Sampaio)

Sabendo que não pode bater de frente com a ala militar devido à influência de generais no governo Bolsonaro, a estratégia de Guedes seria elucidar ao presidente sua insatisfação com Marinho. Segundo a avaliação de Guedes, Marinho tornou-se o vendedor do “terreno na lua”, e isso teria seduzido o presidente. Na tarde de quarta-feira 29, em uma entrevista coletiva, Guedes foi incisivo: “A crise é da saúde. Não pode alguém achar, no momento em que fomos baleados, caímos no chão, está uma confusão danada e temos que ajudar a saúde, alguém vem, bate a nossa carteira e sai correndo. Isso não vai acontecer”.

Chamando de “oportunismo político”, “irresponsabilidade fiscal” e “imperdoável perante a população” qualquer medida que eleve gastos visando “farra eleitoral”, Guedes expôs ministros civis e militares, ainda que não tenha citado ninguém. “Quando nós chegamos, o Brasil estava quebrado exatamente por esse caminho. Ninguém sai do buraco cavando mais fundo no próprio buraco”, disse o ministro. Colocando em xeque outros ministros, Guedes só esqueceu um detalhe: a vida, ao contrário do jogo de xadrez, continua após o xeque-mate.

Davi Alcolumbre: Depois de negociar mudanças no PLP 149/2019, o presidente do Senado deve colocar texto para votação no sábado, dia 2. (Crédito: Pedro Ladeira)