Com o início de operação da plataforma da fintech Maná Crédito, na primeira semana de novembro, o mercado de consórcios do Brasil pode entrar numa era Antes & Depois. Assim esperam os dois cofundadores da empresa, Felipe Miguel Silva e Gustavo Burgos. O projeto foi um dos selecionados de 2020 pelo Lift Lab, o laboratório de inovações financeiras e tecnológicas do Banco Central, programa lançado no último ano do governo Michel Temer. “Nossa solução vai atuar num segmento bilionário e levar liquidez às pessoas”, disse Felipe Silva.

Essa transformação se dará especialmente pelos seus inadimplentes. As regras que regem o mercado de consórcios – e as especificidades de cada administradora – fazem com que as chamadas cotas excluídas (fruto de inadimplência) caiam numa espécie de limbo. O resgate do valor investido fica para o fim do plano. “Tem grupos de 20 anos. O cara até esquece que tinha cota ali”, afirmou Felipe Silva. O também cofundador Gustavo Burgos diz que existem atualmente cerca de 15 milhões de cotas e metade estaria excluída. “Elas representam hoje, em fundo comum, perto de R$ 2,1 bilhões”, disse Burgos.

Invenção brasileira nascida em 1962 entre colegas funcionários do Banco do Brasil que se juntaram para cotizar a compra do carro zero, os consórcios caíram nas graças como produto financeiro no País. No ano passado, de acordo com a Associação Brasileira de Administradoras de Consórcios (Abac), o faturamento do setor chegou a R$ 134,2 bilhões, crescimento de 26,5% sobre os R$ 106,1 bilhões de 2018. Acompanharam esse volume o número de cotas vendidas (aumento de 10,4%) e do tíquete médio (alta de 14%). O ano de 2020 prometia. Até chegar a pandemia. Ainda assim, o resultado surpreendeu. No primeiro semestre as vendas de novas cotas somaram R$ 61,2 bilhões, praticamente em linha com os R$ 61,5 bilhões do mesmo período do ano passado. Buscar um consórcio com taxa de juro em queda só se explica, no entanto, porque o dinheiro não apareceu. “A gente acredita que isso ocorreu porque o crédito acabou não chegando na ponta”, afirmou Burgos.

E aí entra a solução da Maná. Para destravar o crédito empoçado. “Existem algumas dores do consorciado que ninguém está interessado em sanar”, disse. A principal delas é que mesmo pagando em dia a pessoa não consegue antecipar o consumo. Seja por não ter sido sorteada, seja por não ter lance a oferecer. Muitas acabam desistindo no meio. Acrescente-se a isso aqueles que passaram a ter acesso a algum tipo de crédito e decidiram ter o bem imediatamente, em vez de aguardar. Criar um ambiente de negociações reguladas e realizadas com segurança deve revolucionar o segmento.

PELA LIQUIDEZ Burgos (em pé) e Felipe Silva criaram startup para destravar mercado secundário de consórcios. Projeto faz parte do LiftLab, do Banco Central. (Crédito:Johnnie Mello)

Na prática, não existe um mercado instituído de vendas de cotas. Por isso o deságio feito nas poucas transações efetivadas é alto. Não existe liquidez. “Reunir todas essas pessoas num ambiente só fará o spread diminuir”, disse Burgos. Para a solução se popularizar será preciso uma mudança por parte do regulador. Por esse motivo, a escolha para a fintech integrar o LiftLab é paralelamente uma validação. Além disso, o laboratório de inovação do BC tem os players capazes de alavancar ainda mais as iniciativas – são oito patrocinadores e parceiros: AWS, IBM, Microsoft, Instituto Fenasbac, Cielo, R3, Multiledgers e Celer.

No caso da Maná, a plataforma estará fundamentada em blockchain, a tecnologia por trás de criptomoedas. Ela ao mesmo tempo garante duas características fundamentais ao modelo da fintech: segurança e transparência. O projeto vem sendo desenvolvido na plataforma Corda, da R3. Segundo o country manager da empresa no Brasil, Keiji Sakai, ela “garante transparência, imutabilidade e rastreabilidade das transações, comuns às tecnologias blockchain.”

NOVO MERCADO Felipe Silva pensou na solução da Maná há três anos, quando se tornou inadimplente numa cota de consórcio de carro. A sua dor virou ponto de partida para a solução. O cliente acessa a plataforma e seleciona a cota com filtros: por administradora, rating da administradora, preço, prazo de encerramento do grupo, rentabilidade, tipo de cota (moto, carro, imóvel, agro, serviços) e estado da cota (excluída, contemplada ou ativa). “É uma câmara de liquidação que usa a tecnologia blockchain como base e se torna um grande facilitador para o mercado”, afirmou. Burgos complementa afirmando que, ao buscar o BC, eles mostraram o potencial do que criaram. “Dissemos: ‘Temos aqui uma solução capaz de mudar toda uma indústria’.” São 15 milhões de CPFs ativos – cerca de 30 milhões ao longo da história dos consórcios. A tecnologia desenvolvida pela dupla permitirá a transferência de uma cota em até quatro dias úteis, quando não em tempo real. Hoje se leva de 45 a 60 dias, fora as restrições a quem pode comprar. “Queremos ser a B3 dos consórcios”, afirmou Burgos.