Um dos principais líderes do setor no País alerta para a falta de política industrial e revela os caminhos para a retomada do crescimento: reformas e tecnologia.

Nascido em Santa Bárbara d’Oeste (SP), filho e neto de industriais do setor têxtil, Rafael Cervone, 54 anos, cursava a Faculdade de Engenharia Industrial (FEI) quando foi convencido por um empresário de sua cidade natal a entrar para o Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (Ciesp), fundado em 1928 por nomes como Francisco Matarazzo e José Ermírio de Morais. Influenciado pelo pai, ainda na década de 1980 entrou também para a Federação das Indústrias do Estado, a Fiesp. Hoje, Cervone ocupa a presidência do Ciesp e é primeiro vice-presidente da Fiesp, sob o comando de Josué Gomes, também do setor têxtil. “Estávamos em um momento difícil para o setor, tanto pela Covid quanto pelos anos de recessão. Houve um consenso de que dois presidentes dariam mais foco a cada entidade”, afirmou. Nesta entrevista, o representante de 8 mil empresas revela as dificuldades e as perspectivas para melhorar a participação do setor industrial na economia brasileira.

DINHEIRO – A indústria vem perdendo muito de seu protagonismo na economia brasileira. A participação no PIB caiu para 11,3%, mesmo nível de 1950. Vai continuar caindo ou poderá voltar a crescer?
RAFAEL CERVONE — A perda de participação da indústria no PIB é ruim para o Brasil. A indústria é muito ativa em investimento, tecnologia, qualidade do emprego. A Covid mostrou bem isso. O mundo parou e a indústria foi muito dinâmica na busca de soluções. O setor de serviços é importante, foi responsável pelo 1% de crescimento do PIB no primeiro trimestre, mas também tem sido puxado por pessoas que saíram da indústria e montaram negócios, muitas vezes para atender a própria indústria.

Qual o caminho para retomar o crescimento?
O primeiro passo é aumentar a produtividade. Precisamos de uma política industrial de longo prazo, previsível, que não seja de governo e sim de Estado. Mais do que tudo, que não seja uma política de “puxadinho”, como já tivemos. Precisamos de uma política horizontal, sem protecionismo, mas que garanta isonomia. É fundamental para o País ser competitivo. A grande discussão que nós vamos ter agora com os candidatos à presidência e governos estaduais é que ideia de indústria eles têm para o País. A falta de previsibilidade é péssima e não atrai investimentos.

A taxa de juros no atual patamar prejudica ainda mais o setor, certo?
Juros altos não irão reduzir a inflação. É o remédio errado. Os preços estão subindo não por aumento na demanda, mas porque faltam produtos. Houve um desalinhamento das cadeias globais. Aumentar os juros eleva os custos das empresas, que ficaram superendividadas na pandemia. O governo, que paga uma fortuna de juros, vai tomar na cabeça com essa taxa. Ela gera endividamento recorde, como vimos agora. Quando têm dívidas, as pessoas não consomem. A atual taxa de juros é boa só para os bancos.

Se o remédio para conter a inflação está errado, qual seria o correto?
O governo gastar menos. Uma reforma administrativa que faça com que o governo caiba dentro do País, não furando o teto de gastos, e com mais eficiência na gestão pública.

O setor têxtil tem sofrido com as práticas concorrenciais agressivas dos países asiáticos. Como ser mais competitivo em um cenário desfavorável?
A reforma tributária é fundamental — e não apenas para a indústria têxtil. Ela tem de ser ampla e olhar além do ICMS. Há a concorrência desleal dos países asiáticos, que praticam dumping, e o problema do e-commerce. Quem importa até US$ 50 não paga imposto, o que não ocorre para quem compra no mercado interno. É preciso fazer com que todos paguem. O que nós tentamos mostrar é que com uma alíquota menor o governo arrecada mais. Quando o ICMS do setor têxtil foi reduzido de 18% para 12%, a arrecadação aumentou 12,6%. Com mais gente pagando, diminui a sonegação e a informalidade. É importante uma reforma que permita ao Brasil dar alguns passos à frente, elimine a guerra fiscal com os importados, entre os estados e reduza a informalidade, que ainda é muito grande no País.

“O modelo industrial está mudando. A gente ainda vai definir se costura roupa ou imprime, com tecidos inteligentes. Estamos transformando a fibra em algo capaz de armazenar energia e dados” (Crédito:Divulgação)

Para aumentar a competitividade é preciso investir em tecnologia, setor em que o Brasil carece de mão de obra qualificada. Há solução para isso?
Se você for até a escola Senai Franscisco Matarazzo, aqui em São Paulo, vai ver uma estrutura completa de manufatura avançada. Uma televisão na vertical faz o seu bioscanner, cruza com padrões internacionais e com o brasileiro, estabelece sua medida de roupa e em 18 minutos ela fica pronta, sem nenhuma intervenção humana. Entre comprar pelo celular e receber na sua casa, bastam duas horas. O modelo industrial está mudando. A gente ainda vai definir se costura roupa ou imprime, com tecidos inteligentes. Estamos transformando a fibra em algo capaz de armazenar energia e dados. A sua CPU será a roupa, pois não existe nada que passe mais tempo com o ser humano, nem o celular, já que a gente dorme com têxteis. Isso é um exemplo de como a tecnologia avança. Para acompanhar essa evolução é preciso mudar o mindset da indústria.

De que forma isso pode ser feito?
Essa é uma das importâncias estratégicas do Ciesp e da Fiesp. Nós recebemos da gestão anterior escolas que tiveram investimentos significativos em prédios, equipamentos e pessoas. Mas não é suficiente para a anteder à velocidade das mudanças. Nós lançamos em Rio Claro(SP) o piloto da jornada de transformação digital. Vamos investir na capacitação de 40 mil empresas em quatro anos. Uma meta ousada. Serão oito etapas. Começa no diagnóstico, vai para o modelo de negócio, há um mapeamento em que se aplica uma caixa de ferramentas para melhorar a produtividade, e avança para a digitalização dos sistemas e processos até chegar à indústria 4.0. A empresa que participou do piloto teve um ganho de 50,8% em produtividade, algo muito significativo. E é tudo de graça. Na educação, atuamos através do Sesi e do Senai. Introduzimos pensamento computacional, TI, robótica. Desde a quarta série os alunos têm noções de empreendedorismo. Temos parceria com o MIT, Lego, Singularity University, principalmente para desenvolver soft skills, que são tão ou mais importantes que o conhecimento técnico.

De onde vem o dinheiro para tudo isso?
Estamos investindo um recurso significativo, aprovado em conselho, mas não faremos essa transformação sozinhos. Conversamos com todas as entidades que se dedicam à educação no estado de São Paulo: Fundação Lemann, Instituto Ayrton Senna, Natura, Boticário, Roberto Marinho. Todas fazem um excelente trabalho pela educação. O que precisamos é integrar. Trabalhar em conjunto para alcançar o padrão do Chile, que é o suprassumo da América Latina. A meta é fazer isso em cinco anos. Mas se a educação pública não for boa desde o ensino fundamental, não conseguiremos formar bons profissionais. As prefeituras têm recursos carimbados para isso. Talvez não falte verba e sim eficiência no uso desses recursos. No estado de São Paulo há um gap de 340 mil postos de trabalho em TI, computação na nuvem, ciber security. Nos unimos a Microsoft, Amazon, Google, Cisco e Oracle para em dois anos capacitar 270 mil profissionais em TI.

“Através da matriz energética limpa que o Brasil possui nós poderemos contar uma história para o mundo. Não adianta carregar o carro na tomada se a energia vier da queima de carvão ou de uma usina nuclear” (Crédito:Divulgação)

Você participa do B20 e de outros organismos internacionais. Qual a avaliação de seus interlocutores quanto ao Brasil?
Eu recebi mais de 60 embaixadores nos últimos 45 dias. Apesar de toda imagem negativa do País lá fora e do discurso ruim do governo, eles entendem que é possível acreditar no Brasil no médio e no longo prazo. O momento atual é de aumento do protecionismo. Muitas questões ambientais estão servindo de pretexto para isso. Mas nos últimos 15 dias a realidade nua e cura se impôs. Eu fui acordado às 3h da manhã pelo equivalente europeu ao presidente da CNI [Confederação Nacional da Indústria] dizendo que precisava de 50 milhões de toneladas de óleo de girassol. Eles ficaram sem ter como cozinhar porque o óleo era fornecido pela Rússia e pela Ucrânia. O Reino Unido saiu da União Europeia e agora está vendo como é difícil não ter uma parceria estratégica com os países do bloco. O próximo governo precisa mudar o discurso para fora. Com isso o Brasil voltará a ter um papel de liderança na América Latina, o que será importante para ajudar a recompor as cadeias globais de fornecimento.

Por onde começar?
Pode ser pela descarbonização. Todos os representantes da indústria automotiva estão dedicados a definir para onde vai o motor dos nossos carros. Vamos para o elétrico, como o mundo está indo? Vamos para o etanol? Tenho a convicção de que através da matriz energética limpa que só o Brasil possui nesse nível nós poderemos contar uma história para o mundo. Isso ajudaria a melhorar a imagem do País e a trazer tecnologia e inovação. Não adianta carregar o carro na tomada se a energia vier da queima de carvão ou de uma usina nuclear.

Até agora o Brasil tem sido incacapaz de contar essa história…
Vou dar uma boa notícia: o Cetiqt [Centro de Tecnologia da Indústria Química e Têxtil] já trabalha com europeus em uma usina bioceânica de 150 hectares no norte da África para produzir alga marinha, extrair lignina, juntar com o grafeno e fazer uma fibra degradável com condutividade elétrica e de dados. A ideia é usar 8 mil quilômetros de costa para escalar essa tecnologia no Brasil.