Dois anos atrás, quando o distanciamento social impôs uma nova rotina a trabalhadores e empresas, a executiva finlandesa Viveka Kaitila, presidente da General Electric (GE) no Brasil, tomou uma decisão radical e fora dos planos iniciais: trocar a região do Morumbi, em São Paulo, a poucos minutos da sede da companhia, pela pacata Jarinu, cidade de 30 mil habitantes a 60 quilômetros da capital. Com uma poltrona confortável, um escritório adaptado na casa nova e uma boa internet banda larga — que também garantiu a comunicação durante a pandemia com seus pais, irmãos e parentes na Finlândia —, ela seguiu no comando da subsidiária brasileira que hoje emprega 8,4 mil funcionários, opera sete fábricas e que coordena 19 unidades comerciais e de pesquisa. Sob qualquer base de comparação, a GE dirigida por Viveka é uma das mais importantes e longevas filiais do conglomerado industrial americano. São 103 anos de presença no Brasil. “Apenas fui me adaptando ao que precisava fazer”, disse a CEO, em entrevista exclusiva à DINHEIRO. “Replicamos no dia a dia o estilo de ser da companhia. A GE é uma empresa de adaptação, de mudanças e de ajustes.” No ano passado, o grupo faturou globalmente US$ 74,2 bilhões.

A troca de CEP e de paisagem não foi a maior nem a mais importante mudança promovida pela executiva em decorrência da Covid. Viveka tem ajudado a conduzir, em sincronia com o CEO global, Henry Lawrence Culp (mais conhecido como Larry Culp), a maior transformação do modelo de negócio da história da companhia fundada em 1878 por Thomas Edison (1847-1931), o inventor da lâmpada incandescente, da corrente elétrica contínua e do fonógrafo, entre dezenas de outras inovações que redefiniram a indústria e moldaram hábitos de consumo em toda a sociedade desde então. A nova invenção da GE consiste em reinventar sua própria estrutura. Até 2024, a companhia será fatiada em três: GE Healthcare, GE Aviation e GE Renewable Energy (que incorpora GE Power, de motores para locomotivas, e GE Digital, de tecnologia).

Cada uma das novas empresas, voltadas a energias limpas, a serviços e equipamentos de saúde (healthcare) e para a aviação terão seus próprios CEOs, seus próprios tickers na bolsa, seus Conselhos de Administração e, principalmente, suas estratégias de negócios. “Depois de mais de um século juntas, as divisões irão seguir seus próprios caminhos, como filhos que cresceram e que agora têm de ir em frente”, afirmou a executiva. “Na história da GE e do mundo, nunca houve um plano de separação tão grande, num período tão curto de tempo, principalmente envolvendo uma empresa icônica como a nossa. Isso é maravilhoso porque seremos ainda maiores e mais focados”, disse Viveka. Assim como a GE, a compatriota Johnson & Johnson anunciou a cisão do grupo em duas empresas independentes: uma de equipamentos médicos e outra de medicamentos e bens de consumo.

Dentro da estratégia da GE de emancipar os filhos especializados em aviação, em saúde e em energia, o Brasil é peça fundamental. Isso porque, além de ter um mercado de 213 milhões de consumidores e com escassez de recursos e projetos em praticamente todos os setores da economia, na área da saúde os investimentos públicos e privados têm crescido exponencialmente desde o começo da pandemia — e não há sinais de que vão retroceder nos próximos anos. No Brasil, só no Sistema Único de Saúde (SUS), a maior estrutura de assistência médica e hospitalar pública do mundo, apesar do antimarketing do presidente Jair Bolsonaro e do troca-troca de ministros na Pasta, o aumento dos gastos foi de R$ 38,2 bilhões, segundo os dados oficiais do governo.

ENERGIA EM TERRA OU MAR A maior turbina eólica do mundo, para parques offshore, poderá sustentar novos projetos energéticos no litoral do Brasil. (Crédito:Divulgação)

ACHATAMENTO A área da medicina privada, no mesmo caminho, viu o número de segurados saltar de 47 milhões para mais de 49,7 milhões de pessoas, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Somente em 2021, os planos de saúde registraram a entrada de 1,5 milhão de novos beneficiários. Os números vitaminados dos planos de saúde seguem em alta e ignoram o desemprego, hoje em 11,2% da população, e o achatamento do poder de compra, que desabou 8,8% nos últimos 12 meses, segundo dados divulgados na quinta-feira (31) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ou seja, a saúde ganhou um novo patamar de importância para os brasileiros, encorajando hospitais, laboratórios, redes de farmácias e governos a injetar mais dinheiro em novos medicamentos, em equipamentos e em tecnologias.

O processo de divisão (do grupo) para promover multiplicação (dos negócios), como em um processo de mitose e meiose celular, vai atingir primeiro a divisão de saúde, já no começo de 2023. A área de energia será a segunda, com a conclusão do spin-off cerca de um ano depois. Assim, as operações de aviation — que hoje atua no Brasil com a fábrica GE Celma em Petrópolis (RJ) — se tornarão, por consequência, independentes no mesmo processo. “Separadas, as companhias conseguirão atrair mais capital de investidores do mercado de ações e de empresas que são realmente focadas em cada setor”, disse Viveka. “Menores e com mais capital, conseguirão tomar decisões numa velocidade maior, trazer mais inovação e fazer expansões de forma mais rápida.”

MANUTENÇÃO NOS ARES As vendas de turbinas da GE foram prejudicadas na pandemia, mas a alta demanda por aviões de carga ajudou a compensar parte da queda. (Crédito:Divulgação)

DESCARBONIZAÇÃO Entre todas as mudanças em curso na GE, a que pode ser considerada a mais revolucionária é planejada para a divisão de energia. A ordem é colocar todo empenho em projetos de geração de energias limpas, especialmente em eólica onshore (em terra) e offshore (em alto mar). Nos bastidores, segundo fontes do setor, a companhia negocia a construção de um imenso parque eólico no litoral do Nordeste e na costa do Rio de Janeiro. Empresas de petróleo, como a CEO da GE reconhece, têm apostado em geração de energia limpa para promover a transição energética de seus negócios e a descarbonização na produção de eletricidade. Em 2019, a GE já havia relegado a operação de petróleo. A companhia vendeu metade do capital da divisão para a americana Baker Hughes Inc. por US$ 3 bilhões, abrindo mão do controle. Desde então, gradualmente, foi vendendo suas ações no mercado para outros investidores e para a própria sócia majoritária. O negócio rendeu mais de US$ 7 bilhões. Naquela época, os ativos da GE Oil & Gas, de acordo com o balanço, somavam US$ 25 bilhões. Limpar seus ativos e se afastar do petróleo é o caminho para garantir a sobrevivência das operações, da reputação e da própria capacidade de atrair investidores nas próximas décadas, segundo o economista Marcos Barreira, especialista em petróleo e energia. “Para uma companhia com 130 anos e que pretende sobreviver pelos próximos séculos, se afastar dos combustíveis fósseis é o primeiro passo”, afirmou o professor. “É como se hoje tivéssemos na bolsa uma empresa que comercializa óleo de baleia para acender lamparinas. Não dá mais.”

A descarbonização da GE representa, indiscutivelmente, uma das mais importantes guinadas nos 130 anos de história da empresa. No Brasil, a GE foi, até pouco tempo, parceira da Petrobras e das empresas vencedoras dos leilões de campos de petróleo. Uma das últimas iniciativas da companhia do setor ocorreu no auge da euforia com o pré-sal, em 2013, quando a GE Oil & Gas assinou contrato de mais de US$ 500 milhões para fornecer equipamentos e serviços de turbomáquinas para a estatal brasileira. Os equipamentos foram utilizados em quatro novas plataformas flutuantes de produção, armazenamento e descarga. Todas estão localizadas na região da Cessão Onerosa nos campos do pré-sal da Bacia de Santos, no Estado de São Paulo. “Em paralelo ao processo de divisão, estamos posicionando a GE dentro de um processo de transição energética que fará com que a companhia seja geradora de energia limpa e sustentável. Nosso foco é a descarbonização”, afirmou a CEO. Essa será, muito provavelmente, a maior reinvenção da companhia criada por Thomas Edison desde a invenção da lâmpada.

ENTREVISTA: Viveka Kaitila, presidente da GE Brasil
“Decidimos sair do petróleo e só atuar com energias limpas” 

Viveka Kaitila, Presidente da GE Brasil. (Crédito:Divulgação)

A pandemia ajudou ou prejudicou a GE?
A GE está em três setores essenciais, críticos para a economia: aviação, saúde e energia. Cada um teve uma experiência diferente durante a pandemia. Começando pela aviação, houve um impacto inicial com redução no fluxo de passageiros, mas houve aumento significativo no volume de cargas. Como fazemos toda a parte de manutenção de turbinas de avião, o aumento de um lado ajudou a compensar parte da queda de outro. Estamos quase nos volumes pré-pandemia.

Na área da saúde, a demanda disparou…
Sim, mas não na venda de equipamentos, que foi postergada. A demanda se concentrou em serviços. A GE criou um centro remoto para poder atender rapidamente aos hospitais. No ano passado, fizemos 60 mil reparos de forma remota, o que reduziu o risco de contaminação de nossos funcionários e acelerou processos. O investimento no suporte aos hospitais deu muito certo.

Em relação à energia elólica, faz sentido ter parque offshore no Brasil?
Sim, faz todo o sentido. O maior parque eólico do mundo, com tecnologia GE no Reino Unido, terá parques de 1,2 GW cada um. O parque inteiro terá 3,6 GW. Para fazer isso onshore, precisaria de muita terra. Estamos no setor eólico desde 2009 no Brasil. Até então, a solução de máquinas maiores era para países pequenos, com escassez de terras. O mercado rapidamente mudou e começou a demandar máquinas maiores. Parques eólicos enormes, muitos deles inclusive voltados à exportação de energia, precisam ser offshore. Hoje há muitos projetos ligados a empresas de óleo de gás que estão se preparando para a transição energética e olhando para a eólica offshore.

Das três divisões de negócios, qual tem maior potencial de crescimento?
Difícil fazer esse cálculo. Se olharmos para a divisão de saúde, o potencial é enorme. As novas tecnologias proporcionam tratamentos cada vez mais precisos e com identificação de doenças cada vez mais antecipada. Se olharmos para aviação só no Brasil, temos poucas companhias. Mas se olharmos para fora, o potencial da Celma [de turbinas] é enorme, pensando em motores elétricos e combustíveis renováveis. Mas pelo ponto de vista de novos projetos, energia é o maior setor dos três, olhando para o mercado local.

A guerra da Rússia na Ucrânia vai acelerar a transição para renováveis?
Tudo isso acelera, sim. O Brasil pode ser um player nisso também. Com certeza os países europeus estão olhando para várias opções. Não estou envolvida diretamente nas discussões, mas todos querem reduzir a dependência. Isso é natural. Aí pode acelerar a transição energética para a área da sustentabilidade. O hidrogênio verde pode ser uma boa possibilidade de combustível.

A guinada da GE em renováveis significa que o grupo vai abandonar o petróleo?
A GE já tomou a decisão, em 2019, de tirar do grupo a divisão de óleo e gás. Essa divisão passou para o controle da Baker Hughes. Fizemos um spin-off dessa área e, depois de ficar minoritária nessa empresa, decidimos não estar mais no setor de óleo de gás. Hoje só estamos em renováveis, no setor de geração a gás e todos os nossos produtos podem rodar também a hidrogênio. Então, estamos posicionando a GE dentro de um processo de transição energética que fará com que a companhia seja geradora de energia limpa e sustentável. Nosso foco é a descarbonização. A GE tinha equipamento de geração a carvão. No ano passado, resolvemos que não vamos mais vender equipamento novo para isso. Decidimos sair da área de petróleo e isso é um sinal claro de que só vamos atuar com energias limpas. Vamos continuar apenas fazendo a parte de serviços dessas plantas a carvão. Então, tudo que temos na nossa carteira são renováveis e gás que é superimportante para dar essa base para o crescimento da geração renovável.

No caso do Brasil, há projetos também em geração de energia solar e planos de entrar em novas frentes de negócios?
Em solar, não fabricamos os painéis. Vendemos toda a parte de eletrificação, subestações e linhas de transmissão para projetos solares. Diria que estamos olhando para coisas novas, em áreas que já atuamos. Mas nada que sai do nosso core business.

Depois que as três empresas forem criadas, em qual você ficará?
Não sei. Nesse momento, estou ajudando no processo de criação das três empresas. Vão ocorrer movimentações. Para mim não é prioridade para qual empresa eu vou. Estou na GE há 25 anos. Os três setores têm propósitos que se conectam comigo de uma forma muito significativa. São três setores que impactam a vida das pessoas e a economia do País. Sou apaixonada pelos três setores. Por isso, todos nós estamos trabalhando para que essa transição seja a melhor possível.