“A cidade apresenta um aspecto tristíssimo, de verdadeira praça de guerra.” Assim noticiou o Estadão, a 15 de novembro de 1904, a situação no Rio, em meio à onda de protestos violentos que marcaram a Revolta da Vacina. O motim durou seis dias, levou à decretação de estado de sítio na então capital federal e resultou em 30 mortos, 110 feridos, 945 prisões e 461 pessoas deportadas.

A revolta, que teve como estopim as exaltadas discussões sobre a lei que tornou obrigatória a vacinação contra a varíola, voltou à tona agora, em meio à disputa política e à disseminação de notícias falsas em torno da busca por um imunizante contra o novo coronavírus. Tanto naquela época, quanto hoje, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi chamado para arbitrar conflitos e decidir os limites da atuação do Estado em nome da saúde coletiva.

No início de 1905, chegou à Suprema Corte um habeas corpus apresentado em nome de Manoel Furtunato de Araujo Costa, que morava na Rua D. Eugênia, no bairro do Rio Comprido, na região central do Rio. Manoel era um português de nascimento que, nos tempos do Império, se naturalizou brasileiro para ajudar a propaganda republicana – “do que deve estar muito arrependido”, escreveu o seu advogado, na petição à mão enviada ao Supremo.

Manoel estava irritado. Recorreu ao STF alegando “ameaça de constrangimento ilegal” por ter recebido, pela segunda vez, a intimação de um inspetor sanitário que queria entrar na casa para realizar a desinfecção do mosquito causador da febre amarela – o Aedes aegypti. Um prédio vizinho havia sido foco da doença, o que levou os inspetores baterem à porta de Manoel. O pedido foi negado pela 2.ª Vara do Distrito Federal, mas Manoel insistiu na causa e recorreu ao Supremo.

E o tribunal acabou ficando ao lado do morador do Rio Comprido, decidindo proibir a entrada de agentes sanitários na casa do português naturalizado brasileiro sem o seu consentimento. Prevaleceu entre os ministros do STF o entendimento de que a entrada forçada em casa de cidadãos deveria ter sido tratada por lei aprovada pelo Congresso, e não em regulamento editado pelo governo.

Contexto

Na avaliação do professor de direito constitucional da FGV-SP Roberto Dias, o pano de fundo do caso atual e do registro de 1905 é o mesmo: a questão da saúde e o limite da atuação do Estado frente às liberdades dos indivíduos. “Mas estamos falando de direitos diferentes. Em 1905, a discussão girava em torno da inviolabilidade do domicílio e, agora, se trata da autonomia das pessoas em não se submeterem a uma determinada prática médica”, avalia.

Nos tempos de Manoel, o Rio passava por grandes transformações, por meio da demolição de casas populares, o que levou moradores a serem removidos à força de cortiços. O sanitarista Oswaldo Cruz (1872-1917), então com 30 anos, recebeu do prefeito Pereira Passos a incumbência de acabar com a peste bubônica, a febre amarela e a varíola. Em 1903, ele assumiu a Diretoria-Geral de Saúde Pública, que estava subordinada ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores – o Ministério da Saúde só seria criado em 1953, por Getúlio Vargas. Oswaldo Cruz apresentou um plano para erradicar a febre amarela em um prazo de três anos. Passaram a se tornar frequentes na capital cenas de “mata-mosquitos” entrando nas casas, muitas vezes acompanhados de autoridades policiais.

Um sujeito chamado Maximiano Paradas tentou impedir a entrada dos sanitaristas em sua casa, apontando receios com os efeitos dos produtos químicos lançados sobre a sua mulher, grávida. Também havia relatos de moradores que se sentiam “asfixiados” com o cheiro de enxofre lançado nas residências. “Havia boatos de desinformação, resistência de parte das pessoas a essas medidas, insufladas por agentes da oposição, como o deputado Barbosa Lima e o senador Lauro Sodré, ambos militares que adotaram o discurso da liberdade individual. O tecido social rompeu, houve revolta, quebra-quebra”, destaca João Malaia Santos, professor de História da Federal de Santa Maria (UFSM).

Após a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar oficialmente a pandemia, em março deste ano, Santos desenvolveu um projeto de pesquisa com seus alunos traçando paralelos entre os efeitos provocados pela covid-19 e a gripe espanhola, que devastou o Rio em 1918. O estudo foi ampliado e incorporou também o período da Revolta da Vacina, diante do inflamado debate sobre o uso obrigatório da máscara em locais públicos para conter a proliferação do novo coronavírus.

O professor de História vê com tristeza as semelhanças. “O Oswaldo Cruz era quase um Dom Quixote, o que ele teve de enfrentar não foi brincadeira. Quando, há 116 anos, a oposição incitou a população contra a vacina, o resultado foi muito ruim para a sociedade. Quando a gente vê o atual presidente da República falando e repetindo essas frases, não dá pra saber o que vai acontecer”, diz Santos.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.