Por causa da Covid, o mundo viveu no ano passado uma retração sem igual em sua história desde a Segunda Guerra. A queda do PIB do planeta foi de 4,3%, de acordo com o Banco Mundial. Estrago superior ao feito pela Crise do Petróleo (anos 70), pela Recessão Global (1982) ou pela Bolha Financeira (2008). Uma catástrofe. Menos para as maiores corporações transnacionais, que cresceram. E muito. O valor de mercado delas entre março de 2020 e março deste ano saltou 48%. As informações são do recém-divulgado estudo Global Top 100 – Companies by Market Capitalisation, da gigante multinacional de consultoria e auditoria PwC. Mais que confirmar que a Crise da Covid não foi igual para todos, o grande valor do material da PwC está nos questionamentos que ele obrigatoriamente promove. E a pergunta nuclear pode ser resumida em “por que um mundo mais pobre produziu empresas mais ricas?” Parte da resposta está no excesso de liquidez despejado pelos BCs para evitar danos maiores. Mas isso não basta. No prazo de 12 meses de pandemia, as 100 mais cresceram US$ 10,3 trilhões e valiam juntas US$ 31,7 trilhões – 21 vezes o PIB brasileiro. Na avaliação do norte-irlandês Kieran McManus, executivo responsável pela divisão de mercados de capitais e sócio da PwC Brasil, o resultado do estudo que mostra uma concentração de riqueza e poder faz emergir o questionamento sobre um excesso de influência. “Essas empresas, em termos financeiros, têm tamanho de países”, afirmou McManus à DINHEIRO. “Obviamente existe a preocupação em relação ao controle que vão ter sobre o mundo. Por isso elas já estão sofrendo restrições em muitos lugares.” Global Top 100 é mais que um ranking. É uma fotografia detalhada para analisar o estágio da economia mundial, baseada em companhias que criam conexões e são lastreadas em serviços. Spoiler: nenhuma brasileira faz parte da lista.

Por que chegamos a este estágio
Para entender como o capitalismo, um sistema que teoriza sobre a melhor maneira de fluir riqueza, tem gerado concentração (e desigualdade) é preciso olhar para o passado. Especificamente para o século 15, quando foi criada a Companhia Holandesa das Índias Orientais. Nascida com apoio do governo e dos empresários recebeu do Estado o monopólio do comércio em certas regiões do mundo, e lá podia cobrar impostos, assinar acordos e, literalmente, mandava soltar e mandava prender. Mais. Podia declarar guerras. Foi a primeira corporação transnacional que emitiu bônus e ações no mercado para financiar seu crescimento. Não é exagero dizer que seis séculos depois temos corporações que espelham a Companhia Holandesa. Christina Romer, professora de macroeconomia da Universidade da Califórnia e que foi conselheira do ex-presidente americano Barack Obama, afirma que há duas grandes razões para chegarmos a este ponto. “E os dois envolvem ganância”, disse à DINHEIRO. Para ela, a globalização exigiu que países buscassem apoio de empresas para ganhar relevância mundial, e as empresas encontraram o meio de encurtar caminhos ao ter a salvaguarda do poder público. Kieran McManus, sócio da PwC Brasil, diz que os órgãos de controle de mercado de cada país, como é o Cade no Brasil, precisam ficar mais atentos. “O impacto social que essas empresas têm é até maior que a dos países. A influência delas é muito grande.”

Por que as techs tomaram a dianteira
Uma certeza todos devemos ter: tudo é tecnologia, inclusive empresas que não são de tecnologia. No estudo da PwC, 71% do aumento do valor de mercado das companhias listadas no ranking vem do setor. Das sete primeiras colocadas na lista, seis atuam em tecnologia – à exceção da petrolífera Saudi Aramco. É disparadamente o setor que mais concentra companhias em quantidade (21, um quinto do total) e em valor de mercado (US$ 10,8 trilhões, um terço do todo). A primeira da lista, a Apple, valia em março US$ 2,051 trilhões, acima do US$ 1,5 trilhão do PIB brasileiro no ano passado. Na quinta-feira (24) já tinha subido para US$ 2,231 trilhões (mais 8,7% em três meses). Para McManus, da PwC Brasil, há uma questão além da financeira. A tecnologia por si só não tem discernimento e ética. Se a gente, como usuário, não criticar esses problemas, não entenderemos o que ocorre. McManus afirma ainda que o predomínio das bigtechs vai continuar. “Pelos próximos cinco a dez anos, a tecnologia será um ponto essencial de valorização das empresas no mercado de capitais”, disse.

Por que não há brasileiras na lista
Pior do que não ter ajuda do governo para fazer com que as empresas cresçam é o governo ter ajudado e, ainda assim, elas não decolarem. E essa é a saga brasileira. Desde o impulso da Petrobras (primeiro com Getúlio Vargas, depois com Fernando Henrique Cardoso e, por fim, com Lula) o governo sempre teve relações próximas com grandes empresas e setores da economia. O que é normal no mundo inteiro. A questão não é a proximidade, a questão é a promiscuidade dessa relação. Hugo Hopenhayn, professor de economia para América Latina da UCLA, entende que um erro recorrente do Brasil é apostar na tendência “do verão passado”. A abertura de capital da Petrobras se deu décadas após as gigantes de EUA, Emirados Árabes e Rússia já terem sido capitalizadas pelo governo. A maior brasileira hoje é a Vale, que já foi uma estatal, com valor de mercado de US$ 100 bilhões. Outro exemplo que o acadêmico cita foi a política das campeãs nacionais. “Ótima iniciativa, empresas erradas”. Segundo ele, com um programa acertado de fomentar companhias para ganhar escala mundial, o governo desviou do que estava por vir: a tecnologia. “Não adianta dar dinheiro. Falta incentivar pesquisa, criar hubs e polos para desenvolvimento”, disse. Na Coreia do Sul, a política de fomento desenvolveu LG e Samsung e as colocaram na vanguarda da tecnologia. “Não é um investimento único e temporário, é uma relação que precisa ser longa e benéfica para o governo também.” Kieran McManus, da PwC Brasil, lembra de um ponto decisivo. O tamanho da economia local no potencial de tração global. Tanto que dois terços do valor de mercado das 100 Mais são de americanas. “O tamanho da economia brasileira frente às outras economias do mundo tem caído”, afirmou McManus. “A economia brasileira deixou de ter alguma referência na economia mundial.”

RISCO CONTROLADO Christina Romer, economista que foi conselheira de Barack Obama, diz que os Estados Unidos olhavam de perto o crescimento e influência das empresas locais. (Crédito:Divulgação)

Por que todas miram em serviços
Uma montadora de automóveis é uma companhia de qual setor econômico? Essa pergunta inocente não tem nada de errado. Se ela passa a alugar carros diretamente ao consumidor final vira também uma empresa de serviços. Da mesma maneira que toda companhia será de tecnologia, todas igualmente vão se tornar, de alguma forma, prestadoras de serviços. E isso está no DNA das 100 Mais do ranking. Seja em operações B2B ou B2C. É um conceito de modelo escalável, que nasce da tecnologia. Para Rodrigo Marcatti, CEO da Veedha Investimentos, essa é uma tendência irreversível. “Investimentos em desenvolvimento de uma ferramenta vale tanto para produtos que atendem 1 mil clientes quanto para os que atendem 1 milhão de usuários”, afirmou. Outra tendência é a receita recorrente. “Por isso é tão importante para essas empresas a expansão dos serviços de assinatura.” Evidentemente, parte das grandes empresas da lista não atua com assinaturas, mas a cultura de ter com seus clientes (consumidor final ou outra empresa) uma relação de prestação de serviços constante é a base do novo modelo. Em um mundo cada vez mais conectado, digitalizado e desmaterializado, usufruir de determinado produto ou tecnologia não exige, necessariamente, o investimento em aquisição. Trata-se da migração do conceito de ter um time de vendedores para um time de consultores.

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“A economia brasileira deixou de ter alguma referência na economia global” Kieran McManus, Sócio da PwC Brasil.

Por que o consumidor será decisivo
Já se foi a época do bom, bonito e barato. O termo popular em um Brasil ascendente faz pouco (ou nenhum) sentido para as empresas da lista da PwC. Isso porque hoje um elemento se sobrepõe a estas construções. A cultura. Os valores e posicionamentos da marca com relação ao mundo. Em 2011, quando foi acusada de ter em sua cadeia trabalho escravo, a Apple perdeu US$ 12 bilhões na bolsa. Segundo Luiz Fernando Quaglio, especialista em ESG da Veedha Investimentos, hoje o valor de mercado destas corporações tem a percepção do consumidor como norte, e não apenas sua solidez financeira ou aparatos econômicos. “As empresas não são necessariamente atores centrais na resolução de problemas que são coletivos, mas não podem ser passivas nos debates que ocorrem na sociedade”, disse. Claro que não vale para todas as marcas, mas a relação entre consumidor e companhia vai além de uma relação de clientela. “Não são apenas consumidores, mas seguidores. Eles querem se identificar com as ações da empresa e não só com o serviço ou produto oferecido.” E essa construção de marca influenciará por sua vez as gestoras de investimentos que decidem para onde vai o fluxo de compra de ativos. Para Christina Romer, professora de macroeconomia da UCLA, na Califórnia, e ex-conselheira de Barack Obama, o poder não está nos ativos caríssimos e operações bilionárias, mas sim o engajamento de pessoas e a confiança em seu trabalho. “Quem precifica isso? Os usuários.”

Por que o mundo pensa um imposto global
No começo de junho, os ministros das Finanças do G7 fecharam um acordo para a criação de um imposto global de, ao menos, 15% para as grandes empresas. Segundo o ministro das Finanças do Reino Unido, Rishi Sunak, anfitrião do evento, o documento é um “momento histórico” e é o anúncio de uma reforma tributária mundial, “mas adaptada à era digital”. Para Sunak, a taxação é justa porque também dificulta a existência de paraísos fiscais, para onde essas empresas remetem lucros para pagar menos ou nenhum imposto. Na essência, a ideia é que parte dos impostos fique nos mercados em que os produtos ou serviços foram adquiridos. Hoje, a engenharia fiscal de grandes corporações – em especial as bightechs – escolhe os locais em que a tributação será muito menor. É como colocar a sede da empresa numa cidade menor para recolher menos ISS. Críticos, no entanto, apontam que a tributação proposta no G7, de enviar 75% dos ganhos para os países ricos, vai aprofundar a desigualdade. Para McManus, na questão do imposto global entra a discussão sobre a tributação ética. “Estamos morando num mundo mais sofisticado, que tem várias implicações para empresas com as quais nos relacionamos”, disse. Isso significa que as relações delas não se limitam aos stakeholders de sempre. Impactam toda a sociedade. O relatório Global Wealth Report 2021, feito pelo Credit Suisse e divulgado na quinta-feira (24) mostra que no mundo 43% da riqueza está nas mãos de 1% da população. No Brasil, é ainda pior: 49,6% estão com 1%. Num mundo desigual como nunca, será preciso fazer a DR e discutir essa relação.