evoluções econômicas são fenômenos raros pela sua complexidade. Quando acontecem, promovem uma mudança drástica das condições de produção, distribuição e consumo dos bens e serviços em larga escala. Assim foi a Revolução Agrícola, a Industrial e a Digital. Agora, como defende Thiago Falda, presidente-executivo da Associação Brasileira de Bioinovação (ABBI), o mundo vive a Revolução da Bioeconomia. Esse movimento é transversal a todos os setores econômicos e tem sido classificado pelos especialistas em duas vertentes: a bioeconomia clássica e a avançada. Nesta entrevista, Falda detalha as diferenças conceituais e práticas entre as duas, os desafios para sua implementação e como uma revolução dessa natureza pode levar o Brasil ao protagonismo global de forma inédita.

DINHEIRO – O que é bioeconomia?
Thiago Falda – A bioeconomia existe desde que o ser humano utilizou o primeiro ser vivo para gerar negócios e receitas, mas o conceito moderno surge somente em 2019. Foi naquele ano que a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou um documento onde a define como ‘um mundo onde a biotecnologia contribui com parcela importante da produção econômica’ e traz como fundamentos ‘o uso e conversão de biomassa por meio de microorganismos e aplicação de inovações’. Aqui no Brasil, o conceito definido pela Frente Parlamentar da Bioeconomia define que biotecnologia engloba toda cadeia de valor que é orientada pelo conhecimento científico avançado e a busca por inovações tecnológicas na aplicação de recursos biológicos e renováveis em processos industriais para gerar atividade econômica circular e benefício social e ambiental coletivo.

Poderia dar um exemplo que facilite o entendimento do que propõe esse conceito moderno?
Enquanto a bioeconomia clássica envolve quase todas as atividades econômicas, como o setor de saúde e do agronegócio, a nova bioeconomia está se estruturando no mundo agora. Então o agronegócio é bioeconomia clássica. Agora, no momento em que aplico tecnologias inovadoras para, por exemplo, converter os resíduos da lavoura em matérias-primas de alto valor agregado, nós passamos a ter a inserção dessa atividade na bioeconomia avançada.

Qual o nível de maturidade da legislação brasileira para que a bioeconomia avançada ganhe escala no País?
Na bioeconomia, a biotecnologia é transversal a vários setores econômicos. Isso significa que um mesmo produto precisa passar pela aprovação de diversas agências reguladoras. Um exemplo: vamos supor que a indústria farmacêutica decida usar resíduo de biomassa para produzir medicamentos. Se essa biomassa veio da biodiversidade brasileira, então tem que passar pela Lei de Acesso ao Patrimônio Genético. Se a indústria usou um microorganismo geneticamente modificado, é preciso passar pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança. Para ser utilizada como medicamento tem que passar pela Anvisa. Se for um medicamento que funciona como alimento, é preciso aprovação do Ministério da Agriculturae por aí vai. Tem um cascateamento de regulações feitas por agências que, muitas vezes, sequer conhecem os produtos. Isso causa sobreposição de trabalho, relatórios com informações inúteis e muito custo.

Até que ponto esse trâmite é um impeditivo ao avanço da indústria?
Vou responder com outro exemplo. Uma das nossas associadas desenvolveu um mosquito geneticamente modificado para controle da dengue. Eles aplicaram um gene letal no inseto macho que não pica seres humanos. Quando ele cruza com a fêmea toda a prole morre. A tecnologia existe, mas a Anvisa não tem uma categoria na qual possa encaixar esse produto.

Em outras palavras, para a bioeconomia avançada ganhar escala é preciso modernizar a legislação brasileira?
Em alguns aspectos, sim. Temos casos em que a tecnologia é tão nova que nenhuma regra se aplica. Em outros casos o produto é o mesmo, mas como houve uma modificação no processo de produção, a empresa precisa passar por toda a aprovação novamente. Mas a boa notícia é que começamos a ver avanços importantes por aqui como o que aconteceu na Comissão Técnica Nacional de Biossegurança para a legislação de microorganismo. Antes o tempo de aprovação de uma tecnologia era de dois anos, hoje é de três ou quatro meses.

Qual o real impacto da bioeconomia avançada para o Brasil?
Quando olhamos a criação de algumas das indústrias mais importantes para a economia global, nenhuma delas se desenvolveu no País. Indústria automobilística, química, espacial, petroquímica e nem mesmo a da agricultura. No agro tivemos uma grande evolução nos últimos anos, mas até pouco tempo o País era importador de alimentos. Neste momento, o mundo vive a quebra de paradigma da produção industrial na busca de um modelo mais sustentável. Teremos países que podem gerar esses produtos e outros que precisarão comprá-los. O Brasil está no primeiro grupo. Temos cinco biomas, recursos hídricos , somos o país mais megabiodiverso no mundo… De onde virá a biotecnologia? Da biodiversidade. Os alimentos? Da agricultura sustentável. O Brasil tem tudo isso e tem também a biomassa mais barata do mundo, além de amplo know how em bioenergia . A bioeconomia é o primeiro salto industrial que o Brasil pode liderar. Agora se a gente vai se consolidar nesse papel, é outra história.

O que é preciso?
Legislações adequadas: a inovação avança mais rapidamente do que a capacidade de qualquer parlamento de legislar, mas é preciso desburocratizar. Compartilhamento de riscos: investir em inovação é caro e os programas do governo brasileiro de financiamento atendem a demanda da inovação básica com recursos na casa de alguns milhões. Uma biorrefinaria, por exemplo, custa R$ 1 bilhão. A biotecnologia é muito mais cara. Desenvolvê-la cabe em parte ao governo por meio de incentivos.

Pelas características do Brasil e pela demanda global, bioenergia deveria ser um desses pilares estratégicos?
Sem dúvida. É só olhar para a Europa após a Rússia fechar a torneira. Enquanto isso, produzimos energia da cana-de-açúcar e dos seus resíduos. A diversificação do portfólio de energia é uma questão de sobrevivência.

Além da bioenergia, há outras oportunidades?
Quase todos processos industriais poderão ser de alguma forma reinventado pela bioinovação. Mesmo a indústria química poderá substituir alguns de seus produtos de origem fóssil por bioprodutos. Sairá na frente quem tem matéria-prima para esse novo modelo de produção. Como pode ser o caso do Brasil. Falta avançar na tecnologia.

Um dos assuntos mais comentados na COP-26 e que deve voltar à agenda da COP-27 é o mercado de carbono. Como ele entra nessa discussão?
O mercado de carbono é o grande viabilizador das novas tecnologias. O que acontece é que a fabricação de qualquer produto pelas rotas já estabelecidas é muito mais barata do que aquelas com tecnologias sustentáveis que ainda são, em sua maioria, muito novas e que não tiveram os mesmos subsídios das indústrias tradicionais. O crédito de carbono auxilia esse equilíbrio por dois caminhos. Pela taxação onde quem tem maior emissão de CO2 paga mais imposto ou por meio do beneficiamento via crédito para o produto que emitiu menos. Acredito que o segundo modelo é o melhor modelo para o Brasil que tem capacidade de gerar excedente de crédito que poderão ser facilmente vendidos a países que precisam neutralizar sua economia.