Com as ferramentas da ciência, Renato Meirelles, fundador e presidente do Instituto Locomotiva, ajuda organizações privadas ou não a conhecer a cabeça e o comportamento do brasileiro. A massa que consome, não a que dirige. Desde o começo da pandemia, ele produziu 38 pesquisas relacionadas ao tema. Respostas que trazem impactos políticos, econômicos, comportamentais. E mostram uma dura realidade. Metade da classe média (com 88 milhões de adultos é o maior grupo consumidor brasileiro, movimentando R$ 2,6 trilhões anualmente) viu sua renda cair e para 35% dela vai continuar a diminuir. Outros 64% temem perder o emprego. Na média, a renda do trabalhador brasileiro caiu 2/3 na pandemia. Não há saúde mental num pacote desses. Mas Meirelles é, ao mesmo tempo, um especialista em enxergar as oportunidades. “Com a chegada da vacina a gente pode discutir modelos de retomada que não passem pelo sacrifício de vidas humanas”, afirmou à DINHEIRO. Sob uma condição. “Pela lógica da dona Maria e do seu João, aqueles que precisam sair de casa para conseguir vender o almoço e pagar a janta.”

ISTO É DINHEIRO – Vamos começar por um dado estarrecedor: metade dos estudantes brasileiros que vivem em favela deixou de estudar na pandemia.
Renato Meirelles – Esse dado foi levantado pelo DataFavela, numa parceria do Instituto Locomotiva com a Cufa [Central Única das Favelas]. Mostra uma realidade muito triste sobre os legados que a pandemia traz no aumento da desigualdade. Vou dizer algo que parece óbvio: é impossível que a economia do Brasil cresça de forma sustentável sem que toda criança esteja na escola. Esse vírus escancarou a desigualdade em vários níveis e a educação talvez seja o maior deles. Metade dos estudantes que moram em favelas teve de parar seus estudos. O tal do homeschooling simplesmente não é acessível para quem o principal device de acesso é um smartphone. Imagine escrever uma redação ou equação matemática pelo smartphone. Não dá. Pior que isso. Há uma dificuldade gigantesca de conexão com a internet.

Cenário que traz graves consequências sociais e econômicas.
E em várias frentes. Cada ano de estudo equivale a 15,5% de aumento na renda média das pessoas. A primeira consequência será a desigualdade nessa renda. Nas chances que esses brasileiros terão no mercado de trabalho. Por fim, na produtividade de todo o País. Essa consequência vai durar gerações.

Alguma saída num prazo não tão longo?
É preciso que a internet seja considerada um direito fundamental. Estar na Constituição como direito à educação, à moradia, à saúde. Ou você tem isso ou todos os outros direitos estarão comprometidos.

O que parece muito distante num País que não conseguiu montar algo mais elementar, como um projeto sério de combate à Covid-19. A pandemia fez o mundo avançar cinco anos em cinco meses, mas em algumas questões regredimos 50 anos em 10 meses.
Terei de concordar. O Brasil, em vários governos de diferentes ideologias, teve uma série de avanços reconhecidos pelo mundo. A erradicação da pobreza, o fim da fome, o maior sistema público de saúde, ser referência em erradicação de doenças e campanhas de vacinação. O que acontece é que a lógica que se deu de 2018 para cá foi simplesmente a de desmontar o que estava feito. E sob o argumento de não se ter ideologia ficou muito mais ideológico. Decisões técnicas e científicas deixaram de ser técnicas e científicas.

Todos perdem?
Sim. Mais quem mais perde são os mais pobres. Nós tivemos há pouco tempo o ministro da Economia afirmando que havia 30 milhões de invisíveis no Brasil. Talvez a sociedade não tenha parado para refletir sobre a gravidade dessa frase. Se a pessoa que é responsável por criar políticas econômicas que promovam a riqueza não sabe da existência de 30 milhões de pessoas, nós temos um problema sério no planejamento e na condução do País. Por outro lado tínhamos ações como a da Cufa usando reconhecimento por biometria facial para conferir se uma pessoa era aquele CPF e, com isso, conseguindo fazer doações que vinham da iniciativa privada chegarem rapidamente. O Brasil não quebrou por causa das parcerias entre o terceiro setor com a iniciativa privada. Não tivemos convulsões sociais nas favelas por isso.

Mas o governo federal trouxe o auxílio emergencial…
Sim. Mas ele foi feito com mais demora do que deveria, sem utilizar toda a tecnologia de distribuição de renda que há mais de uma década fez o Brasil se tornar referência mundial, e num valor que só chegou a R$ 600 por causa do Congresso Nacional.

E o que o governo não fez?
Aí a lista é grande. O principal foi negar a existência da gravidade da doença. Você trabalha como jornalista. Eu com pesquisa e análise. Vocês como nós trabalhamos na busca da verdade factual fazendo perguntas. O que estamos vendo é o abandono do apreço pela verdade factual de uma parcela da sociedade, dos dirigentes. E sem verdade factual não existe planejamento público. Temos 11 milhões de brasileiros hoje que acreditam que a Terra é plana. Quando a gente começa a discutir coisas básicas, como a necessidade de tomar vacina, ou se a Terra é redonda, é preciso enxergar que por trás disso há uma descredibilização da verdade factual. Para que a versão se sobreponha ao fato. Não é à toa que o jornalismo profissional nunca foi tão importante na consolidação da democracia brasileira. Mais do que isso: o resgate da verdade factual nunca foi tão importante para se criar um ambiente de negócios no País. Não existe segurança jurídica sem verdade factual. O Brasil não vai voltar a crescer economicamente sem uma ampla campanha de resgate à verdade dos fatos.

Olhando dados de vocês, oito em cada dez brasileiros dizem querer o novo na política, mas a renovação das Câmaras nas eleições municipais não passou de um terço. O que promove esse descolamento em que uma intenção de 80% se torne uma realidade de 33%?
O brasileiro sente um vácuo de lideranças.Temos uma demanda grande por renovação, como já tínhamos em 2018. Mas ao não se apresentar um candidato muito claro com o perfil de renovação, você tem o candidato antiestablishment. Em 2018 se deu com um político tradicional, com 27 anos de Congresso. Não à toa o presidente é a oposição e a situação dele mesmo. Você olha os altos e baixos dos índices de popularidade e não tem nada a ver com a oposição tradicional. Tem a ver exclusivamente com as ações dele. E ele precisa continuar a ser a representação do antiestablishment. Já as últimas eleições (municipais) mostraram que permanece uma grande demanda por renovação, mas ao mesmo tempo vimos vencendo dois perfis de políticos: os que não foram negacionistas e os que tentaram um discurso mais amplo para a sociedade. Os grandes derrotados não foram esquerda ou direita, foram os extremos.

No âmbito político, qual seria então a maior demanda do eleitor?
Numa pesquisa que fizemos para o RenovaBR temos uma resposta. Passa necessariamente pelo empoderamento do eleitor. A demanda é por alguém que chegue e fale “olha, quero virar político para tirar poder do político e dar para as pessoas.” A radicalização da democracia participativa é a única forma de reconectar governantes e governados nesse novo cenário. Só isso fará o Brasil ter um ambiente de estabilidade.

E os reflexos econômicos aparecerão?
Economia é administrar expectativas. Aí o Brasil poderá receber todo o investimento externo que o mundo está louco para fazer em nosso País. Precisamos lembrar que depois da Peste Negra veio o Iluminismo.