Responsável por pouco mais de um terço de todos os remédios vendidos no Brasil, o setor de genéricos enfrenta hoje um de seus principais desafios desde que foi implementado no País, em 1999. A lei prevê um prazo de 20 anos para quebra da patente de medicamentos, mas uma brecha permite que o prazo se estenda caso o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) demore na concessão da patente. Há casos em que a concessão dura mais de 30 anos. Na primeira semana de abril, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgará uma ação, que tramita desde 2013, que pede o fim do dispositivo legal que garante essa extensão. “Isso é muito perverso e impede a indústria farmacêutica de investir mais em genéricos”, disse Telma Salles, presidente-executiva da Associação Brasileira das Indústrias de Medicamentos Genéricos (ProGenéricos). De qualquer forma, não impediu o crescimento no ano da crise. O segmento de genéricos faturou, em 2020, R$ 11,5 bilhões, com alta de 18,7% em um ano. Nesta entrevista à DINHEIRO, a executiva também criticou o uso do kit covid, defendido pelo governo federal, com medicamentos sem comprovação científica. “A indústria farmacêutica é fruto da ciência. Não se pode arriscar.”

DINHEIRO – Por que a ProGenéricos entende que é necessário o fim do dispositivo na legislação que garante mais prazo para quebra da patente de medicamentos?
TELMA SALLES – Os genéricos são dependentes da extinção de uma patente para que possam ser lançados. A ProGenéricos defende a patente, que traz grandes benefícios e incentiva a inovação. Mas há um parágrafo da lei de propriedade industrial que entendemos que deveria mudar. Ela diz que a patente durará 20 anos, a partir da data do depósito no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi). Ou seja, a indústria já está usufruindo dessa patente. E se o órgão demora para analisar além de dez anos, o prazo é acrescido no final. Se o Inpi demorar 13 anos para dar a decisão, que é o prazo médio no Brasil, a farmacêutica ganha mais três, chegando a 23 anos de patente. E é isso que estamos combatendo. Há um conjunto significativo de patentes que estão postergadas e proibidas de ter seu genérico ou biossimilar. A punição é para todos – governo federal, Sistema Único de Saúde (SUS), cidadão.

E de quem é a responsabilidade por essa demora?
Quando ataco esse artigo da lei, não estou atacando as empresas que receberam essa extensão. No mundo ideal, seria mais fácil que o Inpi acelerasse os processos. Mas com esse dispositivo, nunca se sabe o tempo que uma patente vai terminar. Isso é muito perverso e impede a indústria farmacêutica de investir mais em genéricos. Falta previsibilidade. Há casos de patente que chegam a 37 anos.

Qual o prejuízo gerado por causa desse prazo esticado?
Para se ter uma ideia, os genéricos já proporcionaram aos consumidores brasileiros uma economia de R$ 177 bilhões com gastos em medicamentos desde que chegaram ao mercado nacional, há 22 anos. São mais de 3 mil genéricos registrados e que atendem a 90% das doenças conhecidas. Poderíamos atender a mais doenças, se tivéssemos mais produtos registrados. Saber o tempo do fim da patente possibilita a pesquisa e novos estudos.

Por outro lado, impedir essa prorrogação não afeta o faturamento e os investimentos das empresas que detêm a patente dos remédios?
No mundo, a patente dura 20 anos e essas empresas estão saudáveis financeiramente. Se em outros países, elas se remuneram, não é razoável que a remuneração de extensão perversa da patente no Brasil possa ser necessária para realizar outros investimentos. É justamente o contrário. Investir em genéricos, seja companhia do Brasil ou multinacional, garante remuneração. As empresas de genéricos investem anualmente 8% do faturamento para pesquisa e desenvolvimento. Não dá para produzir uma cópia sem inovar.

Se essa cláusula não estivesse em vigor, o tratamento de pessoas internadas com Covid-19 poderia ser mais amplo?
Posso garantir que a Covid-19 está sendo tratada com genéricos, como os antibióticos e antitérmicos, seja em hospital público ou privado. Apenas tratar, porque para prevenir hoje só temos a vacina. Em uma calamidade como essa, imagina se não tivéssemos a possibilidade de ter genéricos de anestésicos, por exemplo. Hoje não dá para imaginar que só detentores de registros tivessem condições de suprir o mundo. Estudos científicos ainda não apontaram um medicamento para prevenir a Covid-19.

Caso surja rapidamente um medicamento contra a Covid-19, a senhora é favorável que se discuta a liberação da patente?
Tenho certeza de que a empresa que descobrir essa cura vai ter muita responsabilidade para discutir a ampliação do acesso. E todos os países do mundo têm eficientes mecanismos de negociação, inclusive o Brasil. Essas soluções estão previstas em lei e a discussão será necessária. Precisa discutir liberação ou redução da patente, levando-se em conta também o custo desse produto. De graça não poderá ser. De modo geral, a ProGenéricos defende a proteção das patentes. Ela é necessária. A discussão se dá dentro de um ambiente jurídico seguro. O Brasil certamente vai analisar as prerrogativas legais para isso.

Como o mercado farmacêutico reagiu à crise?
O setor de genéricos cresceu 18,7% no ano passado. Como este tipo de medicamento é cerca de 70%, em média, mais barato, as pessoas puderam aderir aos tratamentos de hipertensão, diabetes e outras doenças. Não houve retrocesso em investimentos durante a pandemia e a indústria vem arcando com a flutuação dos custos.

Na atual gestão, investimentos no programa Farmácia Popular têm caído, e o ministro da Economia, Paulo Guedes, chegou a propor sua extinção. Qual o impacto dessa falta de apoio no programa para o setor?
Esse programa é muito significativo. Quando as pessoas se tratam melhor, procuram menos o SUS. Então, o Farmácia Popular deveria merecer a atenção do Ministério da Saúde para que ficasse mais robusto e incorporasse novos tratamentos. Uma população bem tratada pode ser mais produtiva. O programa precisa ter mais atenção. O governo pode não ter culpa pela pandemia, mas tem responsabilidade sobre tudo o que está acontecendo. O Brasil vai precisar se curar não só da Covid, mas de todas as mazelas produzidas. Isso é responsabilidade do governo.

Falando sobre responsabilidade, qual sua avaliação sobre quem defende o uso de kit Covid ou o tratamento precoce?
A indústria farmacêutica é fruto da ciência. Tudo que foge de comprovação científica não acredito ser adequado. Não se pode arriscar. A ciência está mostrando para todos que é a vacina que vai nos ajudar a voltar para as ruas.

E quando é o presidente da República que vai na direção contrária à ciência?
Seja qual for o cargo, o partido, a farda, crachá, é necessário ter responsabilidade de seus atos. Espero que a gente não veja nenhum ato que seja pior do que a própria Covid. Essa responsabilidade precisa ser bastante refletida. A ciência deu resposta para a utilização da cloroquina, que não é recomendada para tratar a doença. E a indústria farmacêutica produz e não prescreve. Quando se propaga isso, não dá para fugir da responsabilidade. Seria como eu dizer que água de coco seria bom para a doença e fazer um estoque.