Perto de alcançar a terrível marca de 500 mil mortos pela Covid-19, o Brasil vem falhando na condução da crise pela falta de uma liderança nacional para coordenar as ações necessárias para salvar vidas e garantir a retomada econômica. A análise é do economista e ex-governador (por três vezes) do Espírito Santo Paulo Hartung. “Estamos pagando um preço alto, de vidas humanas e na economia, pela ausência de uma coordenação estruturada.” Para ele, o presidente Jair Bolsonaro erra em gerar aglomerações e insistir nos discursos ideológicos. “Com a evolução dessa crise, achei que em algum momento a ficha fosse cair. Mas não levou nessa direção. O que estamos vendo é um flerte com a marcha da insensatez”, disse. O ex-governador capixaba entende que o País precisa mostrar que está disposto a caminhar na direção da economia verde, para uma sociedade com menos emissão de carbono. “Ou por convicção, ou por pragmatismo econômico, nós não temos outro caminho a não ser evoluir na direção da sustentabilidade.”

DINHEIRO – Por que o Brasil chegou ao ponto de ter quase meio milhão de pessoas mortas por Covid-19?
Paulo Hartung – Em um momento de crise, a primeira coisa que precisa ser feita é estabelecer uma espécie de alto comando, uma coordenação. O País falhou nesse quesito desde o início. Estamos pagando um preço alto, de vidas humanas e na economia, pela ausência de uma coordenação estruturada. E isso rebate em estados e municípios, que, por causa disso, também erraram. O segundo problema é o descaso em relação à ciência. Isso atrapalha até agora.

E em relação às vacinas?
Foi um erro enorme. Na hora que os laboratórios estavam em posição ofertante, o governo brasileiro não valorizou a aquisição. O Brasil tem um sistema muito bem montado, que é o Programa Nacional de Imunização (PNI). E a Pfizer ofereceu no ano passado as vacinas justamente por esse sucesso. A demora na compra acabou provocando uma campanha de vacinação sem vacina. Isso impacta nas contas públicas, emprego e renda.

Dava para esperar algo diferente do presidente Jair Bolsonaro que não fosse essa de descaso com a pandemia?
Quando a pandemia chegou e ficou clara a dimensão do desafio, eu imaginei que o governo entenderia essa situação como uma necessidade de um movimento de união nacional. Com a evolução dessa crise, achei que em algum momento a ficha fosse cair. Num momento como esse, faz todo sentido suspender qualquer processo de disputas partidárias e buscar unir o País. Mas não levou nessa direção. O que estamos vendo é um flerte com a marcha da insensatez.

Quando a gente vê o próprio presidente gerando aglomeração e conflagrando mais esses conflitos ideológicos, não estamos indo para um caminho perigoso?
O que está sendo feito está errado e está dando errado. O resultado é visível. Quando passar essa crise e a nação olhar para trás, a fotografia que vai ver não é boa. Já tive de administrar crises da Polícia Militar no Espírito Santo, lidar com o episódio do rompimento da barragem em Mariana (MG). O Brasil precisa de uma liderança responsável, que olhe mais para interesses públicos do que para a disputa do poder.

O senhor disse recentemente que Fernando Henrique Cardoso acertou em entregar a gestão da crise do apagão a Pedro Parente (então ministro da Casa Civil). Bolsonaro deveria ter feito o mesmo?
Um bom líder é aquele que trabalha com boas equipes. Montar boas equipes é ter a capacidade de identificar qualidades distintas nas pessoas. Estamos há mais de um ano nessa situação e não tivemos uma liderança que pudesse cumprir essa missão.

A seguir com essa postura, qual deve ser o caminho do Brasil nos próximos meses?
O mundo está se recuperando com a evolução das campanhas de vacinação. Inglaterra começou errado e virou o jogo. Estados Unidos sinalizam crescimento de 6,5% neste ano. A China também está em um patamar de retomada. O planeta não venceu a pandemia, mas a economia já entra em um ciclo forte de recuperação. A pergunta que fica é se o Brasil vai conseguir captar esse ambiente positivo.

E o que fazer com 14 milhões de desempregados?
É um quadro gravíssimo. Um ponto importante é que o Brasil tem de organizar as contas públicas. Já estávamos com problemas antes do Covid-19. E, em plena pandemia, o governo fez um orçamento que não priorizou a crise sanitária e subestimou as despesas obrigatórias. Além disso, seria necessário organizar os marcos regulatórios para atrair investidores à infraestrutura do País: rodovias, ferrovias, porto e setor de energia. Precisa avançar com essas concessões para garantir um universo grande de empregos.

A economia verde também é um caminho?
Com certeza. O Brasil tem um tesouro, que é a maior floresta tropical do planeta. Temos 12% de água doce no mundo e 45% de nossa matriz energética vem de fontes renováveis. Um país com essas características tem tudo para ser protagonista nesse novo ambiente no mundo. A retomada verde pode ser vantajosa para nosso País. Os investidores querem isso. Mas não podemos querer ser protagonistas e ter esses episódios de ilegalidade na Amazônia.

Como lidar com a falta de credibilidade no exterior das políticas públicas ambientais brasileiras?
Ou por convicção, ou por pragmatismo econômico, não temos outro caminho a não ser evoluir na direção da sustentabilidade. Eu fui um dos que assinaram a carta enviada ao vice-presidente Hamilton Mourão, cobrando políticas mais claras. A ideia nasceu porque setores empresariais começaram a receber sinais de seus clientes preocupados com a evolução do desmatamento. E foi importante porque mostrou para o mundo que o problema da criminalidade na Amazônia não tinha o aval de setores importantes do Brasil.

Por que o Brasil não avança nas reformas?
O País, de maneira irregular, está avançando parcialmente. O teto dos gastos foi um passo importante. A reforma trabalhista também foi um avanço, assim como a da previdência. É importante seguir com a tributária, que hoje é uma corrente amarrada no pé da economia brasileira, e a administrativa. Se a gente não modernizar essa área, não dá para injetar produtividade.